terça-feira, 12 de agosto de 2014

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. « “Irra”, safa, que custa mais a descobrir que a entaipá-las! – Que maldita pestilência, que rebuliço que aqui vai. Há que lavar já as gambas com água de rosas. Não melhora nada mas deixa-lhes outro cheiro. ‘Cáspite’, que pivete»

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«(…) A carinha era assim a modos que de querubim, menos do que de maga... Por freira não passava sem que algum atrevido suspirasse por tão mal empregue ter sido a sua sorte... Bruxa engraçadinha, pensava Gil, e só não a beliscou com medo de feitiços de vingança... - Vamos a andar, toca a mexer, dizia Gil e mirava-a no andamento... A bruxa tinha, porém, mais com que se preocupar. Percorreu o palácio em sobressaltos outros que não do pânico que lhe poderia advir de uma investida de Gil. Tão amedrontada estava que só desprendeu língua diante do monarca, e, na presença de El-Rei, começou por desabafar: - Venho borrada de pavores, meu rei. - Irra, que linguagem foi a contra-saudação real. A bruxa acalmou-se.
Retirou o toucado depois de mandatada a fazê-lo sob um gesto brusco de Gil, descobriu-se por fim, por fim revelou-se, bruxa de arzinho prazenteiro, pensou o rei, depois a mulher bufou e só por fim olhou o monarca com uma curiosidade em que nada havia de obediência ou respeito hierárquico. - Sois vós então o rei? Estava em crer-vos mais gordo... Que fraca figura!
O rei não gostou mas conteve-se, pois querendo o que queria parecia-lhe mais atilado mostrar-se complacente, e a criatura era bruxa, de tudo seria capaz. Fingiu: - Gordo era o outro. O rei meu primo, já se finou. Se não se finasse e outros como ele, entretanto, nem eu era rei nem tu aqui estavas a ganhar a vida, ó bruxa. E já agora, irra que basta de explicações.
 - Ao outro também eu conheci, replicou a feiticeira. E, depois de pausa a recordar: - E conheci aos beliscões que me dava nas bochechas do rabo para me conhecer melhor... Pois faltava conhecer-vos. Tenho agora a sabedoria mais repleta. - Vamos ao que interessa e cuida que não me interessam beliscões mas outros serviços mais complicados. - Eu é que digo o que interessa e quando, castigou a bruxa em tom severo. E voltou a carregar: - E quanto a beliscões ou apalpadelas em cu bem provido, fica sabendo, ó rei, que conduzem vulgarmente a serviços mais complicados do que julgas - disse a bruxa com tanta autoridade que o facto de pôr-se a atuar El-Rei incomodou mais o camareiro que seguia a conversa do que o próprio soberano.
Gil deu um salto quando a bruxa se virou para ele, ordenando: - Trazei-me uma bacia limpa e cheia de água sem turvações. Também um círio de bom arder com pavio de estopa clara e, é claro, luminária com que se ponha aceso. E uma frada de alhos... Se houver presunto e pão, traze uma perna de um e um bom naco do outro. - Pão? Alhos? Presunto? Julguei que as bruxas não se davam com os alhos e que... - As bruxas dão-se com tudo e com todos os que não lhes incomodem a vida, o que vai deixando de ser o teu caso, ó linguarudo... Gil ia replicar, deteve-se. A bruxa continuou, a esclarecer:
 - Aliás, os alhos e o presunto não são para feitiçarias; carecem-me lá em casa. O pão, trinco-o agora e de pronto assim que o trouxeres, pois que tenho as vísceras coladas às ossadas. Que fome, cáspite!
- Ah! - exclamou El-Rei compreensivo, e ordenou: - Assim sendo, prepara-lhe um farnel completo e que não falte nem um garrafão de clarete. Fica tudo por paga do incómodo. Pois isso é que é falar, ó rei. Mas paga a valer quero-a em moedas prometidas, dessas que soam. - Serás paga depois do trabalhinho, ó bruxa. Quando El-Rei disse isto a bruxa amuou, mas amuada conformou-se: - Então, vai de trabalhar. O rei mostrou-lhe as pernas, depois de falar da apoquentação, e a pedido dela teve de as desembrulhar das muitas fitas de pano, húmidas de icor, que as envolviam.
 - Irra, safa, que custa mais a descobrir que a entaipá-las! – Que maldita pestilência, que rebuliço que aqui vai. Há que lavar já as gambas com água de rosas. Não melhora nada mas deixa-lhes outro cheiro. Cáspite, que pivete. Gil foi pelas encomendas. Bruxa e rei nada disseram entretanto, medindo-se de alto a baixo, estudando-se. Gil regressou com o círio, um desses enormes, desmesurados círios pascais ornamentado com motivos santos. Ao vê-lo, a bruxa gritou um bem berrado Cruzes, canhoto!, que deve ter ecoado por todo o palácio.
Gil trazia ainda uma bacia de barbeiro cheia de água mais ou menos clara. Não se esquecera de um grande pão escuro, embrulhado em toalhinha de linho. A bruxa tomou o pão e nele se pôs a trincar com gosto. Findo o pão guardou, por baixo das saias, numa bolsa enorme de pano, a toalhinha de linho, o que deixou Gil em grande indignação mas que em nada incomodou o rei.  - Irra, despachai-vos, bramou El-Rei. - Muito bem, aprovou a bruxa, arrotou, desculpou-se declarando-se empanturrada, e passou a acender o círio». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

Cortesia de CLeitores/JDACT