terça-feira, 26 de agosto de 2014

Romance. Um Amor Feliz. David Mourão-Ferreira. «”Bonita?” Mais, muito mais que bonita. É antes uma daquelas mulheres sobre quem até as outras mulheres, desportivamente engolindo em seco ao ouvirem a seu respeito o moribundo adjectivo “bela”, não conseguem ir muito além de comentários…»

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«Chegar, deitar-se: por vezes os dois actos sucedem-se e encadeiam-se com tal rapidez como se entre ambos não decorresse, hesitante ou cegamente precipitada, aquela operação, um tanto mágica à força de tão simples, de primeiro se descalçar, de logo em seguida se despir. Deitada de través em cima do largo divã, os seus braços tomam de súbito a postura de dois ramos oblíquos, na quase pânica expectativa de sentir-se adorada. Devagar os vai depois estreitando, até que ficam inteiramente estirados para trás; mas já as pernas entretanto começaram a reproduzir, em posição inversa, o grafismo da mesma letra. Digamos, para simplificar, que se chama Y. (E surpreendo-me a murmurar: Ípsilon...) Além de não querer nem poder dizer o seu nome, o nome é o que menos interessa; ou o que menos deveria interessar-nos. Mas só o facto de lhe chamar Y já a torna diferente de quem ela é, de quem eu julgo que ela seja. Com esta sigla de empréstimo, ei-la desde logo um pouco embuçada, ligeiramente encoberta ou menos tangível, como se o rosto e os cabelos lhe ficassem também em boa parte velados, entrançadamente semiocultos por aquele xaile branco, de malha entreaberta e muito larga, quase a evaporar-se, que só costuma aliás colocar em cima dos ombros nus. Pior para mim: assim ainda me parece mais desejável. O xaile branco: adereço infalível no íntimo ritual dos dias de Inverno. Nunca se esquece de o trazer, fofamente dobrado, no fundo do saco do Hermès onde por cima se acumulam boiões de creme, uma bomba de laca, a escova do cabelo, um frasco de perfume ou de água-de-colónia. Por mais que eu lhe tenha sugerido, em diversas ocasiões, deixar o xaile numa das gavetas dessa cómoda, aí mesmo à entrada desta zona secreta do atelier, acaba invariavelmente por voltar a dobrá-lo, por voltar a sumi-lo no fundo do saco. Mas frequentemente me tem dito que nunca costuma usá-lo em casa; e que nem o marido nem a filha, lá em casa, sabem sequer da existência deste xaile. Foi o pai quem lho comprou, em Roma, da última vez que lá estiveram os dois, era ela ainda solteira. E os ombros nus: quando falo dos ombros nus estou a pensar também na nudez de tudo o resto. O deslumbramento, a renovada surpresa, de vê-la entrar aqui no atelier, luminosa e plácida, como se fosse uma deusa que só por engano anda vestida. O júbilo de assistir, minutos depois, nesse divã, nesta poltrona, à sua rápida metamorfose em comovedora bacante, quase aterrada por assim se descobrir. O religioso furor, mas também a lucidez, de ser eu próprio a provocar essa metamorfose, de participar activamente na liturgia desse delírio. O orgulho, enfim, de melhor ainda lhe contemplar, depois do auge, o grande corpo devastado, e todavia renascido. Estrangeira, sim. Ou em parte estrangeira. Do lado do pai, uma bisavó e um bisavô portugueses, ambos oriundos daquela burguesia de ideias largas e de olho vivo para o negócio, depois nobilitada no tempo do liberalismo. Só nos derradeiros arrancos da última guerra, é que este ramo cosmopolita da família voltou aqui a enraizar-se: a própria Y já nasceu em Portugal; e em Portugal tem passado as maiores temporadas da sua vida. Escandinava? Eslava? Inglesa, alemã ou norte-americana? Não interessa. O marido, também arribado de estrangeiras paragens setentrionais, administra por cá uns importantes negócios (propriedades no Alentejo, grande fábrica nos arredores de Lisboa), alguns deles já nas mãos da família, da família dela, desde há três ou quatro gerações. Embora convivam sobretudo com outros estrangeiros, falam ambos, é claro, um português bastante razoável. Ela, principalmente. Bonita? Mais, muito mais que bonita. É antes uma daquelas mulheres sobre quem até as outras mulheres, desportivamente engolindo em seco ao ouvirem a seu respeito o moribundo adjectivo bela, não conseguem ir muito além de comentários deste género: Só é pena que seja um pouco parada. Ou então: Aquele pescoço... Aquele pescoço não vai aguentar-se por muito tempo. É o que geralmente acontece a este género de louras. Ou ainda: Aos vinte anos, sim! Aos vinte é que tu a havias de ter visto! E este último piedoso remoque borbotando por entre as gengivas descarnadas de alguém que não deixa de merecer-me ternura, mas que já começava a aparentar, eu que o diga!, aos vinte anos da Y, os cinquenta e tantos com que hoje carrega». In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz, Editorial Presença, Lisboa, 1986.

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