sábado, 30 de agosto de 2014

A Vida Crucis do Corpo. Contos. Clarice Lispector. «Mas fez uma coisa que era traição. Ixtlan a compreenderia e perdoaria. Afinal de contas, ‘a pessoa tinha que dar um jeito, não tinha?’ (…) antes de ir embora deixou na mesa-de-cabeceira uma libra inteira! Bem que estava necessitada de dinheiro»

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«(…) Depois foi ao Hyde Park e deitou-se na relva quente, abriu um pouco as pernas para o sol entrar. Ser mulher era uma coisa soberba. Só quem era mulher sabia. Mas pensou: será que vou ter que pagar um preço muito caro pela minha felicidade? Não se incomodava. Pagaria tudo o que tivesse de pagar. Sempre pagara e sempre fora infeliz. E agora acabara-se a infelicidade. Ixtlan! Volte logo! Não posso mais esperar! Venha! Venha! Venha! Pensou: será que ele gostara de mim porque sou um pouco estrábica? Na próxima lua cheia perguntaria a ele. Se fosse por isso, não tinha dúvida: forçaria a mão e se tornaria completamente vesga. Ixtlan, tudo o que você quiser que eu faça, eu faço. Só que morria de saudade. Volte, my love. Sim. Mas fez uma coisa que era traição. Ixtlan a compreenderia e perdoaria. Afinal de contas, a pessoa tinha que dar um jeito, não tinha? Foi o seguinte: não aguentando mais, encaminhou-se para o Picadilly Circle e achegou-se a um homem cabeludo. Levou-o ao seu quarto. Disse-lhe que não precisava pagar. Mas ele fez questão e antes de ir embora deixou na mesa-de-cabeceira uma libra inteira! Bem que estava necessitada de dinheiro. Ficou furiosa, porém, quando ele não quis acreditar na sua história. Mostrou-lhe, quase até o seu nariz, o lençol manchado de sangue. Ele riu-se dela.
Na segunda-feira de manhã resolveu-se: não ia mais trabalhar como datilógrafa, tinha outros dons. Mr. Clairson que se danasse. Ia era ficar mesmo nas ruas e levar homens para o quarto. Como era boa de cama, pagar-lhe-iam muito bem. Poderia beber vinho italiano todos os dias. Tinha vontade de comprar um vestido bem vermelho com o dinheiro que o cabeludo lhe deixara. Soltara os cabelos bastos que eram uma beleza de ruivos. Ela parecia um uivo. Aprendera que valia muito. Se Mr. Clairson, o sonso, quisesse que ela trabalhasse para ele, teria que ser de outro bom modo. Antes compraria o vestido vermelho decotado e depois iria ao escritório chegando de propósito, pela primeira vez na vida, bem atrasada. E falaria assim com o chefe: Chega de datilografia! O Sr. que não me venha com uma de sonso! Quer saber de uma coisa?, deite-se comigo na cama, seu desgraçado!, e tem mais: pague-me um salário alto por mês, seu sovina!
Tinha certeza de que ele aceitaria. Era casado com uma mulher pálida e insignificante, a Joan, e tinha uma filha anémica, a Lucy. Vai é se deliciar comigo, o filho de uma cadela. E quando chegasse a lua cheia, tomaria um banho purificador de todos os homens para estar pronta para o festim com Ixtlan.

O Corpo
Xavier era um homem truculento e sanguíneo. Muito forte esse homem. Adorava tangos. Foi ver O último tango em Paris e excitou-se terrivelmente. Não compreendeu o filme: achava que se tratava de filme de sexo. Não descobriu que aquela era a história de um homem desesperado. Na noite em que viu O último tango em Paris foram os três para cama: Xavier, Carmem e Beatriz. Todo o mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres. Cada noite era uma. Às vezes duas vezes por noite. A que sobrava ficava assistindo. Uma não tinha ciúme da outra. Beatriz comia que não era vida: era gorda e enxundiosa. Já Carmem era alta e magra. A noite do último tango em Paris foi memorável para os três. De madrugada estavam exaustos. Mas Carmem levantou-se de manhã, preparou um lautíssimo desjejum, com gordas colheres de grosso creme de leite, e levou-o para Beatriz e Xavier. Estava estremunhada. Precisou tomar um banho de chuveiro gelado para se pôr em forma de novo. Nesse dia, domingo, almoçaram às três horas da tarde. Quem cozinhou foi Beatriz, a gorda. Xavier bebeu vinho francês. E comeu sozinho um frango inteiro. As duas comeram o outro frango. Os frangos eram recheados de passas e ameixas, tudo húmido e bom. Às seis horas da tarde foram os três para a igreja. Pareciam um bolero. O bolero de Ravel. E de noite ficaram em casa vendo televisão e comendo. Nessa noite não aconteceu nada: os três estavam muito cansados. E assim era, dia após dia. Xavier trabalhava muito para sustentar as duas e a si mesmo, as grandes comidas. E às vezes enganava a ambas com uma prostituta óptima. Mas nada contava em casa pois não era doido. Passavam-se dias, meses, anos. Ninguém morria. Xavier tinha quarenta e sete anos. Carmem tinha trinta e nove. E Beatriz já completara os cinquenta. A vida lhes era boa. Às vezes Carmem e Beatriz saíam a fim de comprar camisolas cheias de sexo. E comprar perfume. Carmem era mais elegante. Beatriz, com suas banhas, escolhia biquini e um soutien mínimo para os enormes seios que tinha. Um dia, Xavier só chegou de noite bem tarde: as duas desesperadas. Mal sabiam que ele estava com a sua prostituta. Os três na verdade eram quatro, como os três mosqueteiros. Xavier chegou com uma fome que não acabava mais. E abriu uma garrafa de champanhe. Estava em pleno vigor. Conversou animadamente com as duas, contou-lhes que a indústria farmacêutica que lhe pertencia ia bem de finanças. E propôs às duas irem os três a Montevideu, para um hotel de luxo. Foi uma tal azáfama a preparação das três malas. Carmem levou toda a sua complicada maquilagem. Beatriz saiu e comprou uma mini-saia. Foram de avião. Sentaram-se em banco de três lugares: ele no meio das duas». In Clarice Lispector, A Via Crucis do Corpo, Rocco, Rio de Janeiro, 1998, ISBN 85-325-0950-9.

Cortesia de Rocco/JDACT