domingo, 17 de agosto de 2014

A Estória Jogralesca de Afonso Henriques. António J. Saraiva. «São dois painéis, ‘o painel de Afonso Henriques’ e ‘o painel do rei’, aos quais serve de dobradiça a referência à batalha de Ourique, que explica como o Afonso Henriques do primeiro painel se tornou o ‘rei’ do segundo…»

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O que são a Terceira e Quarta Crónicas breves de Santa Cruz
«(…) Mais tarde foi cercar Badajoz, e já a tinha quase conquistada quando o imperador chegou e cercou por sua vez o rei de Portugal. Este sai a cavalo para combater o imperador, mas o porteiro do castelo deixou de fora a língua do ferrolho, o rei bate nela com toda a força e cai do cavalo. Assim se cumpriu a maldição de D. Teresa. O rei de Portugal é preso pelo imperador, cede-lhe as terras da Galiza e de Leão e promete vir-lhe prestar menagem logo que possa montar a cavalo. O imperador deixa-o seguir para Coimbra. Mas desde então o rei de Portugal nunca mais montou, fazia-se transportar de carreta e em colos de homens, até que morreu. Tal é, em resumo, o assunto do texto a que Diego Catalán chamou o Poema de Liberdade de Portugal. Neste resumo não é possível dar um elemento essencial dele que são as falas dos personagens. A maior parte do texto é constituído por essas falas, quase todas muito curtas, formadas por vezes com uma só palavra, em sequências de diálogos. A mais longa é o discurso do conde Henrique antes de morrer.
Mas mesmo esta nada tem de oratória: é uma série de conselhos em estilo muito directo e prático. Isto faz com que este texto nos lembre certos rimances populares que são essencialmente dramáticos e em que a narrativa serve só para preparar a contracenação dos personagens. O resumo, que tem de ser feito em discurso indirecto, próprio da narração, eclipsa inevitavelmente este carácter consubstancial no nosso texto. Basta no entanto o resumo para tornar evidente que ele nunca poderia ter sido obra de monges ou clérigos, a quem jamais ocorreria dar relevo a um conflito de Afonso Henriques com o papa, e sobretudo desta maneira, em que o rei de Portugal aparece vitorioso, conseguindo levantar, por obra e graça da sua espada, a aplicação de um interdito eclesiástico. Note-se especialmente a humilhação a que é sujeito o cardeal legado. Teremos ocasião de analisar em pormenor qual é o significado do episódio do bispo negro, muito expressivo desta orientação do nosso texto.
Não provindo de um escritório de clérigo, donde pode ele provir? Notemos primeiro que se trata de uma estória com um enredo circular, cujos episódios giram à volta de uma acção única, o cumprimento de uma maldição. Não se trata de uma história de Afonso Henriques, mas só dos acontecimentos que preparam e que são consequência da maldição de D. Teresa, que é a segunda grande personagem do poema. Para ser uma verdadeira história de Afonso Henriques o nosso texto deveria falar da conquista de Santarém, da tomada de Lisboa, da fundação de Santa Cruz e de Alcobaça, e sobretudo insistir na guerra contra os mouros. Para nós, Afonso Henriques é o invencível adversário guerreiro dos mouros. Para o autor desta história é um príncipe em luta com o rei de Leão e com o papa, um filho em guerra com a mãe e o padrasto. A referência à batalha de Ourique pode explicar-se pelo facto de na primeira parte da história o herói ser tratado como Afonso Henriques e na segunda (intervenção do papa, etc.) como o rei, pois foi depois desta batalha que ele passou a usar este título. Pode objectar-se que pelo assunto a estória do bispo negro pouco tem a ver com o caso da zanga da mãe e do filho. Mas formalmente e do ponto de vista novelesco há um enquadramento: foi para conseguir a libertação de D. Teresa que o papa interveio e excomungou o reino, facto que arrastou a fuga do bispo, a nomeação do bispo negro, etc. Talvez se trate de tradições inicialmente desligadas, mas o facto evidente é que houve a intenção de as ligar pelo mesmo anel, que é o cumprimento inexorável da maldição. São dois painéis de uma mesma composição, o painel de Afonso Henriques e o painel do rei, aos quais serve de dobradiça a referência à batalha de Ourique, que explica como o Afonso Henriques, do primeiro painel se tornou o rei do segundo.
Por outro lado devemos levar em conta o carácter dramático que já notámos no nosso texto. Ambas as considerações nos impõem a conclusão de que se trata de uma composição jogralesca. É a hipótese que já pusemos em 1951, ao mesmo tempo que Lindley Cintra, mas separadamente, quando da edição da História da Cultura em Portugal. Essa hipótese acha-se hoje reforçada por diversas razões». In António José Saraiva, A Cultura de Portugal, Teoria e História, Gradiva, Lisboa, 1991, 2007, ISBN 978-972-662-190-4.

Cortesia de Gradiva/JDACT