Uma
Constelação Única
«(…)
Maquiavel e o bispo Soderini sabiam que Bórgia contava com
o poderoso apoio do seu pai, o papa Alexandre VI, em Roma, e compreenderam que
ele tinha também o apoio do rei Luís XII de França, que se encontrava com o seu
exército em território milanês, ao norte. Florença situava-se entre ambos, vulnerável
por todos os lados. Maquiavel sabia que Florença não podia render-se a Bórgia,
mas sabia também que a cidade não estava em condições de resistir. Numa
tentativa de aplacar Bórgia, Maquiavel terá feito ao que parece uma sugestão.
Os indícios posteriores sugerem que foi concluído um acordo secreto neste
encontro entre Bórgia e os florentinos. Bórgia estava muito ansioso por ter ao
seu serviço o homem que ele considerava ser o engenheiro militar mais talentoso
de Itália. Tratava-se de Leonardo da Vinci, que naquele
momento vivia em Florença. Ao cabo de uma longa ausência, Leonardo regressara
recentemente à sua cidade natal, com os seus cadernos de apontamentos cheios de
desenhos e descrições codificadas de todo o tipo de máquinas militares infernais.
Era provável que Bórgia já tivesse visto alguns desses desenhos quando se
encontrara com Leonardo três anos antes. Nessa ocasião, Bórgia ficara tão
impressionado que oferecera emprego a Leonardo, oferta que aparentemente
Leonardo recusou. Agora, uma vez que Florença estava ameaçada, ou talvez devido
a alguma garantia dada antes, Leonardo ver-se-ia obrigado a aceitar a oferta de
Bórgia. Maquiavel estava plenamente consciente de que a proposta de Bórgia
carregava perigos, mas ela significava que Florença teria um espião junto de
Bórgia. Talvez o espião conseguisse transmitir para Florença a natureza exacta
das intenções de Bórgia e por que motivo ele fazia bluff.
Leonardo
da Vinci,
Nicolau Maquiavel e César Bórgia: uma constelação única: cada
um, à sua maneira, simboliza um aspecto diferente da humanidade. Bórgia
tornou-se um arquétipo de actos monstruosos; basta o seu nome para evocar imagens
de traição, assassínio e depravação. Era um homem que agia por impulsos, que
avaliava as pessoas intuitivamente, com uma agudeza astuta, quase animal. Era
um selvagem, mas também um homem do Renascimento: um selvagem com uma educação
esmerada, uma mente brilhante em sintonia com os seus instintos mais básicos. Leonardo,
por outro lado, tornou-se o exemplo supremo das mais elevadas aspirações
humanas. É o homem do Renascimento por excelência: possuía uma vasta
gama de conhecimentos e grande talento em numerosos campos. As suas pinturas e
desenhos contam-se entre os melhores deste período, os seus volumosos cadernos
de apontamentos contêm as pesquisas científicas e invenções tecnológicas mais
complexas e, no entanto, o homem em si
mesmo permanece um enigma. Sabemos imenso sobre os seus pensamentos e
as suas obras, mas a pessoa real que produziu esta profusão de tesouros
continua uma figura cheia de sombras cujos traços
colossais (...) nunca poderão ser mais do que imaginados vagamente e na
distância. Nisto, assemelha-se estranhamente a Shakespeare. Dois dos
maiores espíritos criadores da humanidade, cada um deles com obra tão
individual, chegaram até nós singularmente sem individualidade no que se refere
à sua pessoa. Ou pelo menos assim parece. Mas existe uma maneira de termos uma
imagem mais clara de Leonardo. Quando é visto em comparação com os seus
contemporâneos Bórgia e Maquiavel, duas figuras muito intensas, certos aspectos
surpreendentes e inesperados da personalidade de Leonardo começam a evidenciar-se.
O que levou na realidade Leonardo a
concordar em trabalhar para Bórgia? E
quais as suas verdadeiras intenções na realidade? Como veio a ligar-se a Maquiavel? Estas perguntas, tantas
vezes não encaradas com a devida atenção, contêm pistas vitais pata compreender
a personalidade de Leonardo, ajudando a dissipar as nuvens de mistério que se
formaram à volta deste grande sábio.
Maquiavel,
em comparação, era um homem bem mais normal: alguém que gostava de gracejar e
de beber com os amigos, que apreciava os pecadilhos sexuais, que era ambicioso
e se empenhou em subir o pau ensebado da vida pública. Mentia, negociava,
espiava e escrevia os relatórios para os seus amos políticos: era o
funcionário público por excelência. No entanto, fazia bastante mais do
que limitar-se a obedecer a ordens. A sua qualidade excepcional estava na sua
necessidade de tentar compreender as manobras do mundo político onde se
movimentava e na sua tentativa de discernir uma ciência no comportamento
humano. Mas seria esta mesma busca da verdade, de uma filosofia subjacente aos
assuntos humanos, que faria recair sobre ele a infâmia. Na sua obra-prima O
Príncipe, descreveria como os seres humanos se comportam de facto (em
vez de mostrar como devem comportar-se) e de que maneira um líder poderoso
poderia manipular tudo isso em seu proveito. Como resultado, o nome de Maquiavel
ganharia má reputação, condenado pela Igreja e por todos os cidadãos íntegros.
Depois da sua morte, esta notoriedade espalhar-se-ia pela Europa, de tal maneira
que, no final do século, William Shakespeare, lá na remota Inglaterra,
podia pôr uma personagem a protestar a sua honestidade a toda a prova com a
frase Acaso sou um político, sou
insidioso, sou um Maquiavel? e ter a certeza de que todo o público,
desde os cavaleiros e as suas damas até aos barulhentos do fosso que viam a peça
em pé, compreendia o que ele queria dizer». In Paul Strathern, O Artista, o
Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles Criaram,
Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.
Cortesia
do CAutor/JDACT