Em
busca do Si
«(…)
A imagem construída nos ecrãs multiplex do seu cérebro mudou de forma notória. Mas
enquanto o seu sistema visual mudou submissamente de acordo com os objectos a
cartografar, certas outras regiões do seu cérebro, cuja função é regular o
processo da vida e que representam vários aspectos do seu corpo, mantiveram-se
inalteradas em termos do tipo de objecto que representam. O
corpo permaneceu sempre como objecto,
e as sim permanecerá até que a morte sobrevenha. Não só o tipo do objecto se
manteve precisamente o mesmo, mas também o grau de modificação que ocorreu no
objecto, o corpo, foi mínimo. E
porquê? Porque apenas uma pequena amplitude de estados corporais é
compatível com a vida e o organismo está geneticamente desenhado de forma a
manter essa pequena amplitude de estados vitais e equipado para procurar
obtê-los, a qualquer preço. Repare na curiosa assimetria que acabo de descrever
e que pode ser expressa nos seguintes termos: algumas partes do cérebro têm
liberdade para vaguear pelo mundo e, ao fazê-lo, podem cartografar qualquer
objecto que as características do organismo lhes permitam cartografar. Por
outro lado, certas partes do cérebro, as que representam o próprio estado do
organismo, não têm esse mesmo à-vontade. Não têm liberdade de escolha. Só podem
cartografar o corpo e fazem-no no interior de mapas relativamente predeterminados.
Constituem a audiência cativa do corpo e encontram-se à mercê da sua
uniformidade e conformidade.
Existem
várias razões por trás desta assimetria. Em primeiro lugar, a composição e as
funções gerais do organismo vivo permanecem as mesmas, em termos da sua qualidade,
ao longo de uma vida inteira. Em segundo lugar, as modificações corporais que
continuamente ocorrem são pequenas, em termos quantitativos. Possuem limites
dinâmicos estreitos, uma vez que o corpo, para sobreviver, tem de operar dentro
de uma pequena amplitude de parâmetros; o estado interno do corpo deve permanecer
relativamente estável em comparação com o ambiente que o rodeia. Em terceiro
lugar, este estado de estabilidade é governado a partir do cérebro através de
um sofisticado equipamento neural desenhado para detectar variações mínimas nos
parâmetros do perfil químico interno do corpo e para comandar acções destinadas
a corrigir, directa ou indirectamente, as variações detectadas. Em suma, no
teatro de relações da consciência, o organismo constitui a unidade do nosso ser
vivo, ou seja, do nosso corpo; e, no entanto, como se verá, a parte do
organismo chamada cérebro tem dentro de si uma espécie de modelo desse mesmo organismo.
Este estranho facto, tantas vezes esquecido, é mais do que notável. Considero-o a pista mais importante na
descoberta dos possíveis alicerces da consciência.
Cheguei
à conclusão de que o organismo, tal como é representado no interior do seu
próprio cérebro, é um precursor biológico provável daquilo que finalmente se
torna o fugidio sentido do si. As raízes profundas do si,
incluindo o si alargado que abarca identidade e individualidade, podem
ser encontradas no conjunto dos dispositivos cerebrais que de forma contínua e
não consciente mantêm o estado do corpo dentro dos estreitos limites e da
relativa estabilidade necessárias à sobrevivência. Estes dispositivos representam,
de forma contínua e não consciente, o estado do organismo vivo nas suas várias
dimensões. Denomino proto-si a actividade que ocorre no conjunto destes
dispositivos. O proto-si é o precursor não consciente dos níveis do si
que surgem nas nossas mentes como os protagonistas da consciência: o si
nuclear e o si autobiográfico».
In
António Damásio, O Sentimento de Si, O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência,
Publicações Europa-América, 1999, 2004, ISBN 972-1-04757-0.
Cortesia
de PEA/JDACT