segunda-feira, 1 de setembro de 2014

A Montanha Russa de Deus. Alexandre Honrado. «O autor tem uma amante que o ama, que vem nos momentos exactos, e que o arranca da patinagem das fantasias para a dura realidade do ‘no fim de semana não vamos a casa da minha mãe nem ao cinema e ficamos aqui um com o outro e os vizinhos vão protestar e...’»

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Ora viva!
«(…) Agora que sabes a que eles se referiam as linhas lá de cima, repara: Marguerite Yourcenar está sentada em cima de uma pedrinha e recita-se, em francês. E aqui começa logo um dos problemas desta(s) história(s), pois é reconhecido que a esmagadora maioria dos habitantes do Mundo não fala francês. Je sais que je tombe dans l’inexplicable, quand j’affirme que la realité, cette notion si flottante, la connaissance la plus exacte possible des êtres est notre point de contact, et notre voie d’accès aux choses qui dépassent la realité. Diz ela. É perigosíssimo citá-la agora, temos consciência, agora que nada ainda começou. Os leitores perdem-se com muita facilidade, como se perdem canetas que estimamos, isqueiros, a paciência..., amem o que nunca se verá duas vezes, dizia o poeta. Mas, suspirando, confessa-se que são citações de mais. Pelo menos para começar.
Ah, é verdade, a senhora está sentada numa pedrinha, o campo à sua volta está florido, a tarde é amena, de amena Primavera assumida. Um pouco mais longe estão três homens. Sentados no chão. Há uma estrada que acaba um pouco mais adiante e na sua berma está um táxi mal estacionado. Trata-se de um velho Mercedes 180 que só há poucos dias tem um potentíssimo motor novinho em folha, facto que para ti, é absolutamente inútil, a menos que apanhes o táxi em questão num dos próximos dias... Quem são? O autor e os rarradores (pelo menos, os narradores principais, como acabarás por reconhecer). O autor é o mais pálido. Tem a palidez de todos aqueles que vivem escondidos e ele esconde-se como um proscrito por trás de narradores e personagens, narradores e personagens que nas histórias por vezes são multidões, cada cabeça sua sentença e todos os que participam nas histórias têm, é claro, alguma coisa para narrar...
Interrompe-se aqui o que se contava só para dizer que passou um pássaro. A curiosidade é que não voava. Passou com passinhos de bailarina, olhou sem curiosidade para os três homens, desconheceu a Yourcenar que, entretanto, come uma sandes de queijo fresco, e afastou-se. Convém dizer-se já, relatando o fio que apruma a história: o leitor és tu. Pobre estatuto. Falta-te um valor essencial na vida moderna: reconhecimento. Ninguém te conhece deste lado. Podes estar nu, exibindo o teu mais sincero despudor, o teu mais mesquinho desprezo por nós que nunca o saberemos. Pegaste na história por acaso, estás a lê-la e neste preciso instante..., vês? Paraste e interrogaste-te se deves continuar ou desistir e ligar a televisão que te hipnotizará mais facilmente pelas próximas horas. Não o faças. Esta é uma história interactiva. Ora carrega agora neste ponto final. Sentiste? O pássaro acaba de regressar e ignora-nos. Continuemos.
Não penses, lá porque sem ti não vivem nem autores/escritores/editores/narradores, que podes andar por aí impune. O teu retrato-robot está pendurado nos escritórios de autores/escritores e narradores e há ainda uma versão cravada de setas em cada editora de livros. E desfeito que está, deste modo, o teu ego, vamos às apresentações. O autor é, pois, o das feições amarelecidas. Muitas horas às voltas com canetas, lápis, borrachas, computadores, impressoras, ainda com o revisor, mas olhe que no prontuário não vem a palavra Quiasma, onde raio foi descobrir essa? - e, muito pior, com o editor, cuja mor sabedoria literária se resume na expressão … esse título não me parece muito comercial. O autor é ainda afectado, daí a sua palidez, pelo facto de se esquecer muitas vezes das horas e trocar o almoço com o jantar, já sem falar que, uma vez por outra, atira com a roupa lavada, distraidamente, para o caixote do lixo e reveste-se com as roupas sujas com que anda há três dias... O autor tem, para o compensar, uma amante que o ama, que vem a sua casa nos momentos exactos, e que o arranca da patinagem artística das suas fantasias para a dura realidade do no fim de semana não vamos a casa da minha mãe nem ao cinema e ficamos aqui um com o outro e os vizinhos vão protestar e...» In Alexandre Honrado, A Montanha Russa de Deus, Editorial Bizâncio, 2001, ISBN 972-53-0114-5.

Cortesia de E.Bizâncio/JDACT