«(…) Constatando-se o teor destas trovas, somos levados a
concluir que, ou Ayras Nunes era natural da Galiza mas não de Santiago (ali
exercendo apenas, durante uma parte relativamente curta da vida o seu mester ao
serviço da igreja) e daí não conhecendo totalmente bem, como peregrino, as vias
ou os caminhos que conduziam a Santiago ou, então, esta busca, do caminho certo apresenta-se-nos aqui mas só num sentido
figurado, mesmo que filosófico, por assim dizer, em termos de procura de uma
razão de existência. A par desses dois poetas-trovadores de Santiago da Galiza,
representados em significativo estilo no Cancioneiro da Vaticana, dois outros
significativos autores desse mesmo período
alfonsino, Paay Gomes Charinho e Pedro Amigo Sevilha, aí nos dão o seu
precioso testemunho do seu louvor (e homenagem) ao Apóstolo. O primeiro deles,
natural da cidade galega de Pontevedra, canta singulares estrofes nestes
termos:
Ay, Santiago, padron
sabido,
vós m'adugades o meu
amigo...
Ay, Santiago, padron provado,
vós me adugades o meu
amado.
Quanto ao segundo desses trovadores, Pedro Amigo Sevilha
(cidade da sua naturalidade), os seus versos não são menos cativantes:
Quando eu un dia fui a
Compostela
en romaria, vi hüa pastor
que, pois fui nado,
nunca vi tan bela,
nem vi outra que
falasse milhor
e demandei-lhi logo
seu amor
e fiz por ela esta
pastorela.
Alguns trovadores deste período souberam, por um lado, legar
ao Cancioneiro
da Vaticana uma nostálgica melancolia onde já se reinventa a palavra saudade. Outros, por sua vez, souberam falar do
amor que se sente até doer. Em todos eles (e não sem, nalguns casos, se poder
detectar algum exagero), a tristeza melancólica da partida e a ânsia, mesmo que
doentia, do conflito da chegada,
marcam por assim dizer as duas vertentes dominantes nesta estrutura poética.
Nela o Amor fala pelo seu nome e quase sempre em discurso directo.
Hoje, estas trovas medievais têm um sabor muito próprio, um
acre ao sabor cerimonioso e distante do passadismo
histórico. Elas valem, afinal, pela distância que nos separa do tempo em que
foram produzidas, em pleno período em que se ia de romagem a Santiago de
Compostela a pé ou de mula, com um simples bordão e cabacinha (trilhando
a pé, semanas a fio, caminhos pedregosos e poeirentos). Elas valem, também,
num prisma verdadeiramente diferente, por estarem inseridas num outro contexto:
o de constituírem o espólio cultural (oral e não só) luxuosas comitivas,
organizadas quer por elementos da nobreza quer do clero, acompanhados de
soldados e criados, ostensivamente munidos de teres e haveres.
Alguns casos exemplares de peregrinos ilustres que foram em romagem até
ao túmulo do apostolo (séculos XI-XV)
Em pesquisas por nós efectuadas ao longo dos dois últimos
decénios nos arquivos e bibliotecas portuguesas mais variadas com particular
incidência para a Torre do Tombo, Biblioteca Nacional e Biblioteca da Ajuda,
pudemos concluir pela existência de uma série de documentos medievais alusivos
a peregrinações por parte de altas figuras portuguesas a Santiago de
Compostela, alguns dos quais já se encontram publicados (individualizadamente),
embora ainda desconhecidos no conjunto de uma formulação teórica de incidências
socio-religiosas e psicossociais. Das várias peregrinações de personagens
ilustres que, no período situado entre o século XI e meados do século XV foram
de Portugal a Santiago na Galiza, contam-se as seguintes, entre outras:
- conde Henrique, 1097;
- Sancho II, rei, 1244;
- rainha Santa Isabel, 1325;
- conde D. Pedro, 1336;
- Jan Van Eyck, pintor, 1429.
Reportando-nos a Alexandre Herculano, com efeito, o conde
Henrique realizou, no Inverno de 1097 a
1098 (supostamente partindo de Guimarães), uma viagem à Galiza para visitar o célebre templo de Sant’Iago.
Acreditando na veracidade deste facto, importa registar, no entanto, que nesse
ano existia já, no essencial, a catedral compostelana, tal como hoje os
peregrinos a conhecem». In Manuel Cadafaz Matos, O Culto Português a
Sant’Iago de Compostela ao longo da Idade Média, Peregrinações de homenagem e
louvor ao túmulo e à cidade do Apóstolo entre o século XI e século XV,
Instituto Português do Património Cultural, Lisboa, 1985.
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