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«Podíamos ficar-nos ficar por aqui se, em última análise, o conflito e,
sobretudo, a sua expressão enquanto “ficção queirosiana”, não comportasse além
dessa configuração genérica, uma ambiguidade insanável que sendo a da nossa
relação com o Desejo, ao menos na cultura ocidental, afecta a totalidade da
nossa vivência humana, e a converte no teatro por excelência da nossa vida
partilhada entre a aparência e a ilusão, a realidade no seu deslumbramento
solar e a melancolia da sua ofuscação. Ao teatro de Eros conferiu Eça de Queirós
uma dimensão ao mesmo tempo burlesca e trágica, não como momentos necessários
da nossa vivência amorosa e erótica, mas como um só nó inextricável.
O “rumor das saias de Elvira”, onde resumiu a sua crítica e o seu
exorcismo da paixão romântica e do Romantismo como visão alienante da vida, da
história e da sociedade, revelar-se-á na sua ficção, não só uma obsessão
inexpugnável, como o “inconsciente” dela. Como o mesmo Romantismo.
Já se disse, o realismo queirosiano é um romantismo recalcado, sempre
pronto a irromper onde menos se espera, como a sensualidade indomável dos seus
ascetas, ao fim de meio século de penitência heróica. Ridiculizadas para
efeitos de encenação literária realista, as famosas saias, de todos os feitios,
inundam as páginas de Eça, convertidas em ícones eróticos a tempo inteiro e dão
corpo, desta vez revelando o que romanticamente encobria a um imaginário erótico
sem precedentes na nossa literatura e raro, sobretudo então, no imaginário
ocidental.
Essas “saias” não são como as de Elvira, rasura do proibido ou do
obsceno, mas revelação do oculto por excelência na nossa civilização “vestida”,
ao menos nessa época, que o cristianismo revestiu de um manto mais opaco e
trágico que a túnica de “Nessus”. Mesmo se, ao fim e ao cabo, a “mítica nudez”,
como imagem da “Verdade”, se revela mais opaca e irredutível do que os
simulacros com que a revestimos.
O enigma de Eros transcende o campo e o imaginário do que designamos de
civilização ocidental e, não sem equívocos, cultura judaico-cristã. Mas só o
triunfo da cultura cristã, na sua versão pauliniana e agostiniana fizeram desse
enigma uma leitura que afectou e condicionou não apenas a expressão e a prática
dos nossos rituais éticos, amorosos e sociais, mas o tornou consubstancial à
nossa visão da existência como “drama de Salvação”. O que noutras culturas
afecta o meramente ético, e já não é pouco, tornou-se na cultura cristã a
pedra-de-toque de uma exigência de transcensão da condição humana, a obrigação
de se ‘ser perfeito’ como o ‘Pai celeste’. Mesmo utópico, para a maioria dos
cristãos durante milénios, este ponto de vista divinizante interiorizou-se como
uma espécie de imperativo de sublimidade a que só os ‘santos’ se desejam
conformar, mas que irradiou para toda a esfera profana. A “Princesa de Clèves”
é, numa óptica mundana, uma heroína da “renúncía” ao mero amor humano em busca
de um amor esvaziado da sua ficção da Felicidade. No tempo de Eça este erotismo
confundido com as exigências da felicidade, já não tinha esse perfil
sublimante. O reino da Graça começava a perder o seu sobrenatural ponto de fuga.
O Romantismo enaltecera o ‘amor sublime e sublimado’ em termos de mera
humanidade. Os novos ícones que substituíram os da antiga santidade chamam-se
Heloísas, Carlotas, as nossas Teresas». In Eduardo Lourenço, As Saiasde Elvira
e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.
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