quarta-feira, 25 de abril de 2012

Carta de Marvão. Aníbal Belo. «O pesadelo perdeu densidade, quando ela me disse que o caso era que, ali ao lado, no edifício do Tribunal Velho, havia um relógio, que pautava as horas, as meias horas e os quartos de hora, com som agudo e troante e, avariado que estava, repetia, sempre duas ou três vezes, dando, ao tempo, pouco espaço, para não ser medido...»



Cortesia de José Rodrigues e jdact

«Desapiedado de mim, não conseguindo soçobrar as forças de rendido, estando por tudo e por nada, naquela ansiedade, com o pesadume da solidão a abater-se-me, pensei, consolando-me, que tinha que fazer pedagogia no meu pensar, que afinal aquela era mais uma experiência multídova da vida, não podendo protestar contra aquela situação. Quando a Tia Joaquina, pressurosa, me informou que havia, apenas, um pequenino problema na sua casa, temeroso pela resposta, arregalei os olhos e, em polvorosa, vi a casa a ruir, a vir abaixo, e eu, lá dentro, no meio dos escombros, à procura de mim e das minhas coisas, desmaiado, desfalecido, e a minha mãe, lá longe, para além dos males que a consomem, a rezar pelo menino que se fez homem.
O pesadelo perdeu densidade, quando ela me disse que o caso era que, ali ao lado, no edifício do Tribunal Velho, havia um relógio, que pautava as horas, as meias horas e os quartos de hora, com som agudo e troante e, avariado que estava, repetia, sempre duas ou três vezes, dando, ao tempo, pouco espaço, para não ser medido...
Assim, as badaladas, triplicadas e cubicadas, entoavam dia e noite, para sossego de toda a vizinhança...
Resignado, cobri-me de lamentações, esconjurando aquele malfadado relógio da torre e de repetição, fabricado e inventado no século XV.
No dia a seguir, espertado das insónias da noite inteira, cedo estava no Cartório, delimitando o meu dia, que predestinei às obrigações do protocolo. Vestido de cinza, fui primeiro à Câmara, para trocar cumprimentos, prometer lealdades e receber solidariedades. O Presidente não estava, mas deixei o meu gesto, radiado de simpatias. Encostado ao balcão da secretaria, enquanto esperava que fosse atendido, estou a ver, pelo retrovisor, que a memória me deixou límpido, um velho relógio, redondo, encostado e suspenso na parede branca, de que era ali confrontante, a contar o tempo, a data do meu desembarque, naquele porto alto. Olhei-o bem, fixei-lhe o som cavo e compassado dos segundos por si medidos e, com saudades, muitas saudades, lembrei-me do velho e alto relógio francês da casa paterna, cujo pêndulo embalava sempre e eternamente uma menina, pintada em esmalte branco, de caracóis loiros na cabeça, bailando sempre sorridente e enigmática, no seu vai-vem giratório, como que a ensinar que a vida, para ser airosa, anda sempre de um lado para outro.
Eram as minhas inscrições de infância, de menino pasmado e parado a olhar a menina do relógio, como que a dizer-me que nascemos embalados, com o seu tic-tac a ensinar-me o compasso binário do tempo, a que só o esvoaçar de alguma mosca desvirginava aqueles silêncios. E aquela menina, perfeita madrugada, timbrada da beleza das donzelas de Botticelli, a medir-me, extasiada, a levada das horas, que parceiravam com as ausências, testemunhando afectos sempre esperados ou agasalhados no colo da minha Mãe.
Quase a afundar-me em leito caudaloso de lágrimas, tive que dar vau ao choro, quando o funcionário camarário, de dentro do balcão, me perguntou o que queria. Atarantado, como menino apanhado em falta, respondi que queria cumprimentar o Presidente, informando-me logo que não estava, mas só à terça-feira é que despachava. Por isso, dizia-me, se fosse assunto administrativo, teria que aguardar aquele dia. Recomposto, disse-lhe, olhando ainda magnetizado, e de soslaio, o relógio, quem era e que pretendia apenas apresentar as minhas cortesias. O funcionário saudou-me com a efusão dos que gostam de dar boa guarida e abrigada, acolitado pelos restantes, que me renderam mercês antecipadas, augurando todos boa estada, que a terra era boa e as pessoas de bem.
Amparado pelas sinceridades espontâneas daquelas delicadezas, arvorado mais em mim, com âncoras a garantir-me pé seguro, dei, de ordens, as minhas saudações, deixando para trás aquela gente vizinha, que honrou a minha despedida ali, levantando-se, em pequeno semi-círculo, que me rodeou, como pequeno coro a cantar salmos laudatórios ou jaculatórias de boas-vindas». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Com a amizade de JCM
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT