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Herculano perante a Regeneração
«Ficou resolvido que se mandassem barcos ao Porto buscar, o marechal o mais depressa possível, para lhe confiar a chefia do governo. Sucedeu então um episódio significativo, que dividiu os partidários do movimento. À ala esquerda opôs-se a que o marechal viesse por mar e reclamou que marchasse à testa do Exército sobre Lisboa. Para isso foi enviado ao Porto um abaixo assinado subscrito por José Maria Grande, Joaquim António de Aguiar e outros. Alegava (ou protestava) que estava preparado pelo Paço um atentado contra a vida do marechal. Rodrigo, porém, insistia para que este viesse nos barcos; e obteve do embaixador de Inglaterra uma carta neste sentido, carta que foi levada num barco inglês posto à disposição pelo embaixador. O receio de que a insurreição estalasse no caso de o marechal se demorar e por outro lado o de que a tropa vencedora, entrando em Lisboa, fraternizasse com a população, como sucedera em Setembro de 56, dando origem a uma insurreição espontânea de incalculáveis consequências, devem ter inspirado esta diligência do embaixador e dos políticos cartistas. E havia ainda a circunstância de que se Saldanha se apresentasse como simples particular no Paço para receber o encargo de constituir ministério, ficaria limitado o alcance do movimento e no fundo a revolução não seria reconhecida. Foi certamente este último aspecto que levou a ala esquerda a agir no sentido oposto.
Qual foi a posição de Herculano neste momento crucial da revolução que estava assumindo proporções muito mais amplas do que provavelmente ele tinha previsto? Contra o que era de esperar e em contradição com as suas ligações no Paço, Herculano alinhou com a ala esquerda. Escreveu, em termos apaixonados ao marechal para que viesse por terra com as tropas. Dir-se-ia que Herculano compreendia o desenvolvimento da situação e que o aprovava. Permanecia no entanto ligado à pessoa do marechal, em correspondência com ele, e sugeria-lhe numa carta um projecto de governo em que entravam moderados como o próprio Rodrigo da Fonseca.
Saldanha não quis desde logo romper com os seus amigos da esquerda: resolveu-se por uma solução intermédia e astuta: veio de barco, mas trouxe as tropas; por alturas de Pampulha ‘a pedido de suas Majestades’, saiu sozinho e foi cumprimentar o rei e a rainha às Necessidades.
Depois voltou ao barco, veio sair com as tropas no Terreiro do Paço e marchou à frente da parada até ao Paço real. A uma janela da rua do Arsenal, com o marquês de Nisa e Bulhão Pato, Herculano assistiu à parada. Quem sabe os planos de futuro primaveril que sonhou nesse 15 de Maio! Tudo parecia propício: Saldanha fiel, a velha política varrida pelo movimento popular; e o próprio movimento popular controlado por um chefe prestigioso, presumidamente bem intencionado. A entrada de Saldanha foi maravilhosamente festiva. Aclamações, lágrimas e flores choveram sobre o general de quem muitos esperavam sinceramente ‘a regeneração’ (esquecidos da sua duplicidade passada ); houve iluminações nocturnas; na Ópera as aclamações não acabavam. O Grémio Literária, que preparava uma recepção comunicara já ao marechal o entusiasmo e o afecto que por ele sentia o ‘mundo literário’». In António José Saraiva, Herculano Desconhecido. 1851-1853, Edições SEN, Porto, 1953.
Cortesia de Edições SEN/JDACT