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O impulso antes da palavra
«A Natureza desmaterializou-se, intelectualizou-se através da linguagem, passou a ser sentida e interpretada segundo a lógica deste novo código. A imagem do mundo e de nós próprios foi distorcida pela linguagem. O pensamento formula e é formulado pela linguagem. É dela causa e efeito. Mas o comportamento verbal também segrega e projecta emotividade. A poesia, as narrativas, o canto e as práticas dramatúrgicas são modalidades em que se emprega o discurso falado e onde predomina essa componente afectiva, fisionómica, pulsional, inseparável do discernimento. Um curioso exemplo disso é a utilização da palavra como arma, substituindo a confrontação física: esquimós seriamente ofendidos costumavam ‘combater’ através de injúrias mútuas. A disputa desencadeava-se numa sucessão de canções vexatórias em que o vencedor era consagrado pelos gritos de aprovação dos assistentes. O léxico e a estrutura gramatical da língua que aprendemos moldam os diferentes modelos de sentir, reagir e interpretar. A palavra assinala, conceptualiza; a sua memorização permite evocar coisas ausentes, sobrenaturais, supostamente exerce até autoridade sobre o objecto nomeado.
Entre as sociedades ditas primitivas os vocábulos estabelecem uma relação de equivalência directa entre o som designador e o objecto assinalado.
Entende-se o uso das palavras como uma manipulação da referência correspondente. Julgada expressão da coisa mencionada, a palavra pode, por isso, substituí-la. O som tem o atributo de significar materialmente aquilo que indica.
Em certas etnias, o verdadeiro nome de um indivíduo permanece em segredo, porque, possuindo propriedades semelhantes, o nome descoberto pode ser aproveitado para, por exemplo, lesar o seu portador. o nome de um espírito ou poder sobrenatural é mantido também, por vezes, oculto e somente evocado em alturas adequadas. Se originalmente os gestos corporais serviam de amplificador ou ressoador expressivo da mensagem verbal e a linguagem oral referia-se a coisas específicas, com o tempo, os vocábulos passaram a ser menos concretos e mais abrangentes, mais generalizantes. Devido à capacidade de transcendência da palavra, tornou-se imperioso dar-lhe continuidade temporal, preservar cronologicamente a qualidade efémera da forma fonética, proteger este modo organizado de exteriorizar o raciocínio. Um novo prodígio surgiu assim com a escrita. Se a memorização da palavra dotava o indivíduo com um extraordinário recurso, a possibilidade de a registar era ainda mais insólita, impressionando profundamente. A faculdade de escrever, numa comunidade iletrada, legitimou assim uma estratificação da autoridade. Claude Lévi-Strauss sugere que no nascimento da escrita poderá estar latente o desejo de poder social.
- "É uma coisa estranha a escrita. Aparentemente parece que a sua aparição não deixaria de determinar modificações profundas nas condições de existência da humanidade; e que essas transformações deveriam ser principalmente de natureza intelectual. A posse da escrita multiplica prodigiosamente a aptidão dos homens para preservarem os conhecimentos.
- […] Essa exploração que permitia reunir milhares de trabalhadores para os obrigar a tarefas extenuantes, reflecte melhor o nascimento da arquitectura do que a relação directa encarada há pouco. Se a minha hipótese for exacta é necessário admitir que a função primária da publicação escrita foi a de facilitar a servidão. O emprego da escrita para fins desinteressados com vista a extrair dela satisfações intelectuais estéticas é um resultado secundário, se é que não se reduz, na maior parte das vezes, a um meio para reforçar, justificar ou dissimular o outro”.
A primeira faculdade comunicativa do ser humano é o choro. O choro constitui o estágio mais arcaico e indeterminado do comportamento verbal. Revela uma perturbação indefinida (pode ser fome, pode ser dor) e traduz um impulso automatista, não educado, que se irá transformando ao longo do tempo. Antes de articular sons com o mínimo de consistência semântica, a criança aponta, estica o braço para aquilo que quer. O impulso da fala nasce dum desejo expresso por um gesto intuitivo. Para o desejo da criança ser compreendido, ela, mais tarde, pode tentar repetir sons vagamente familiares e associáveis ao objecto solicitado». In João Soares Santos, Estudos sobre Artes Cénicas Asiáticas, Fundação Oriente, 2000, ISBN-972-785-007-3.
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT