quinta-feira, 19 de abril de 2012

Cultura. Civilização. António José Saraiva. «Na civilização chinesa sempre houve uma oposição entre cultura e ciência. A ciência não se ocupava, como no Ocidente helenizado, das leis do universo. Era um conjunto de práticas e artes, mais ou menos empíricas e artesanais, listas de receitas que não se baseavam em princípios racionais»


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A literatura
A literatura, como a música, tem na sua origem e desenvolvimento uma motivação religiosa. O teatro, tanto o grego como o medieval, tem uma função litúrgica e cerimonial , e à música moderna desenvolveu-se a partir de cerimónias litúrgicas. As narrativas da Bíblia, tais como as dos “Vedas”, são a matriz fundamental da inspiração das diversas literaturas. Mas ‘tudo seus avessos tem’, e as motivações truanescas, eróticas e até mesmo pornográficas não tiveram um lugar menos importante.
Em qualquer caso, sem a arte retórica não seria possível a literatura, pela qual se transmite o que não é exprimível pelos símbolos lógicos (ou matemáticos). A vida interior individual ou social não é toda redutível a conceitos de contornos definidos. Tem algo de impreciso ou de fugitivo que não cabe na expressão exacta e que exige aproximações retóricas.
E o caso da matéria que Balzac revelou em “La Comédie Humaine”. Não se trata de um mistério, mas de uma realidade positiva que a lógica não pode abranger, embora se tenha dela um imperfeito conhecimento. Trata-se de uma sociedade de que o próprio autor fazia parte e que, por isso, não podia observar de fora, na sua totalidade.
O mesmo pode dizer-se de “À la Recherche du Temps Perdu”, de Proust, que não contempla o mundo social, mas o mundo individual e espiritual em profundidade. Esse livro ensina-nos mais sobre a afectividade humana do que um tratado de psicologia com pretensões científicas e didácticas. O teatro de Shakespeare é uma sondagem incomparável sobre as paixões dos homens.
Desde as origens, a arte literária está associada à festa e ao luxo. E, bastante evidente o çarácter musical em todas as suas formas, desde a lírica ao drama. A poesia, a música, a dança e o drama formaram, juntamente com as artes plásticas, um conjunto de actividades festivas, que por vezes se distinguem pela palavra ‘cultura’ em sentido restrito, com exclusão da ciência e da técnica. Há tentativas de síntese dessas várias artes, como a ópera e os espectáculos criados por Wagner.
Modernamente  já no século XX, devemos acrescentar a este conjunto o cinema, que tem íntimas relações com a literatura, especialmente com a narrativa.
Embora nada tenha que ver com a retórica, a ciência é uma conquista humana e, como tal, um acrescento à natureza, sendo ao mesmo tempo a própria natureza revelada. E a consciência humana da natureza, mais que um acrescento à natureza.
Na civilização chinesa sempre houve uma oposição entre cultura e ciência. A ciência não se ocupava, como no Ocidente helenizado, das leis do universo. Era um conjunto de práticas e artes, mais ou menos empíricas e artesanais, listas de receitas que não se baseavam em princípios racionais. A cultura era a sabedoria, ou arte de bem viver, que implicava a aprendizagem de certas virtudes sociais e das regras de uma omnipresente etiqueta.


No Ocidente helenizado, a ciência não admite retórica. A palavra é despojada, aproximando-se do algarismo e da expressão algébrica.
Confunde-se frequentemente a ciência e a tecnologia, quando, na realidade, esta é uma aplicação da ciência a fins práticos. A descoberta e a investigação das leis da electricidade são do âmbito da ciência, mas a sua aplicação à iluminação, obra de Edison. é uma conquista tecnológica. A tecnologia pode contribuir para transformar ou até, para destruir a natureza. O mundo é, mais pequeno hoje do que antes dos descobrimentos tecnológicos. Os transportes rápidos encurtaram o espaço. Durante milhares de anos, os exércitos que invadiam a Itália tinham de transpor os Alpes a pé ou a cavalo. Aníbal, no tempo dos Romanos, e Napoleão, depois da Revolução Francesa, demoraram aproximadamente o mesmo tempo nessa travessia. Hoje, esta é muito mais rápida graças aos túneis, às pontes e aos transportes rápidos. Mas a tecnologia fundamenta-se no conhecimento científico da natureza, o qual nem sempre tem como finalidade transformá-la.
A teoria física de Einstein foi aproveitada para as destruições da Segunda Guerra Mundial, mas não foi concebida para esse fim, nem para qualquer outra manipulação útil. A finalidade de Einstein era compreender melhor a natureza resolvendo problemas levantados pela física de Newton e seus sucessores, tal como a teoria da inércia de Galileu serviu para resolver obstáculos que contradiziam a física de Aristóteles. A teoria da gravitação de Newton deslumbrou os homens do seu tempo porque trazia uma visão simples, coerente e geral do universo físico. Também a teoria da gravitação deu lugar a várias engenhosas invenções para diversas aplicações, tanto com fins pacíficos como guerreiros». In Cultura, António José Saraiva, Difusão Cultural, 1993, ISBN 709-972-154-7.

Cortesia de Difusão Cultural/JDACT