sábado, 21 de abril de 2012

O Espião de D. João II. Deana Barroqueiro. «- São naires da melhor casta que varrem os caminhos por onde o Sámundri passa quando vai a pé e embostam as câmaras onde pousa. Levam nas bacias bosta de vaca delida em água, a qual seca mui depressa e é usada como coisa mui limpa e purificadora por serem as vacas animais sagrados»



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«Os paços do Samorim estão no meio de um palmar, a cerca de uma légua da cidade e Pêro da Covilhã esconde um sorriso de zombaria, ante a modéstia dos edifícios que somente se distinguem de outras construções do Malabar por serem maiores e terem telhados de tijolo em vez de folhas de palma, prerrogativa d'el-Rei e dos pagodes nos seus templos. As casas térreas ocupam uma vasta área e estão divididas em inúmeros aposentos, onde Sua Majestade aloja o exército de homens e mulheres naires e brâmanes que tem a seu serviço.
Durante a navegação de Cananor para Calecut, o espião havia imaginado mil artimanhas para conseguir entrar nos paços e presenciar uma audiência do Samorim. Soubera pelos relatos de Ismail e de Bubaka, que tal privilégio só se obtinha com muitas peitas ao catual e outros oficiais da corte, além de uma oferta ao ganancioso soberano, cujo valor jamais estaria ao alcance da sua bolsa.
Por milagre, pela graça dos dois mercadores ou pelas duas forças conjugadas, o seu desejo foi satisfeito. Está sentado no chão dos paços reais, com os persas, alguns embaixadores estrangeiros e grande número de cortesãos, dispostos segundo a sua qualidade e importância, sob a vigilância do catual, à espera do Senhor dos Mares. Ao fundo da sala, está o leito coberto de tecidos brancos muito finos e panos acolchoados cor de púrpura, com almofadas de seda, onde se há-de recostar o soberano mais poderoso das Índias. Diante do estrado, junto a uns poios de pedra muito lisos, sentam-se oito escrivães com as olas e os penões de ferro prontos para gravarem as suas ordens e provisões.
O escudeiro sente as pernas dormentes da incómoda posição, mas dá o desconforto por bem empregue, pelo privilégio de observar, à sua guisa e com toda a minudência, a corte de Calecut, anotando as pessoas e os cargos, a sua relevância e precedências, prestando particular atenção ao grupo de mercadores muçulmanos junto de Ismail e de Bubaka. Distrai-o a entrada na sala de cerca de cinquenta mulheres que, munidas de vassouras e bacias de latão, varrem o chão, desde leito até às portas que dão para os aposentos privados e, em seguida, espalham com as mãos pelas partes varridas o líquido castanho das bacias.
- São as Varredeiras? - pergunta a Ismail Numen, admirando a riqueza das jóias das mulheres. - Parecem-me de muita qualidade para serviço tão baixo.
- São naires da melhor casta que varrem os caminhos por onde o Sámundri passa quando vai a pé e embostam as câmaras onde pousa. Levam nas bacias bosta de vaca delida em água, a qual seca mui depressa e é usada como coisa mui limpa e purificadora por serem as vacas animais sagrados.
- Embostam... com bosta de vaca? - balbucia o escudeiro, sem crer no que ouve. - Espalham merda de vaca nos paços d'el-Rei! Que asco!
- Agora mesmo estão a besuntar os assentos onde Sua Majestade se há-de assentar - insiste Mir Bubaka, zombando: - Sendo a vaca sagrada, a bosta sagrada é, portanto não ole mal, como bem podes sentir daqui.
As moças embostam com todo o cuidado uns poiais de pedra, um pouco arredados da camilha e neles assentam uma tábua muito alva de quatro dedos de altura e logo um pajem lhe deita um pano de lã de carneiro preto que dobra três vezes sobre o assento.
- El-Rei tem de usar sempre esta manta, onde quer que se assente, por estado, lei e costume - explica-lhe Ismail.
O som de muitos instrumentos de metal faz calar as vozes e ruídos na sala, ao anunciar o Samorim e todos se lançam de bruços no chão, com os braços estendidos, mantendo-se uns instantes em adoração e retomando de seguida os seus lugares. Só os naires ficam de pé, com a mão direita a segurar a espada nua e a esquerda posta diante da boca em sinal de cortesia.
Pêro da Covilhã mira com assombro o invejado imperador das especiarias, uma criatura franzina, toucada com uma carapuça da feição de uma mitra de bispo, bordada a pérolas e pedraria, nua da cinta para cima e com um pano semeado de rosas de ouro batido a cingir-lhe as ancas e as coxas, preso por dois cintos de ouro cravejados de rubis. De ouro e pedras preciosas são, também, os grossos braceletes que lhe cobrem os braços e as pernas, bem como os anéis dos dedos das mãos e dos pés, que traz descalços como os de um pedinte, onde faíscam rubis e safiras de altíssimo preço e, das orelhas esburacadas, pendem correntes de ouro com diamantes e pérolas do tamanho de avelãs.
Traz numa das mãos a espada e, no peito, ombros e testa, por humildade e fé, três riscos feitos com uma mistura de cinza, essências e especiarias. Nunca, até àquele momento, o escudeiro vira ou ouvira falar de um rei que se vestisse como um gentio sem polícia e trouxesse ao mesmo tempo sobre o corpo nu e na baixela do seu serviço um tesouro que poucos monarcas do Ocidente poderiam pagar.
Acompanham-no o brâmane principal, os naires da sua guarda e pajens de serviço que o ajudam a reclinar-se na camilha, pondo-lhe duas almofadas debaixo dos braços. Um dos nobres mais privados senta-se no estrado ao lado do leito, com um prato cheio de bétele que prepara e dá a el-Rei que vai mascando a noz e cuspindo os restos para uma bacia que, no lado oposto, outro moço de nobre casta segura nas mãos. À cabeceira, um pajem abana um leque, redondo e largo, preso numa comprida haste e, aos pés, outro servidor sacode-lhe as moscas com um abano feito das sedas brancas de um cavalo. Alguns nobres principais, esfregam-lhe, de vez em quando, as pernas, os braços e o corpo. Pêro cogita se será por lhe darem cambras de estar sempre deitado na mesma posição.


Cortesia de wikipedia

A um sinal do catual, os músicos tocam uma charanga e, no meio da sala, uma hoste de naires faz os seus jogos de guerra, lutando com lanças ou com espada e adarga, artes em que se mostram grandes mestres, e o Samorim vai gabando e favorecendo os melhores. No fim dos jogos soa de novo a fanfarra para a cerimónia da investidura e el-Rei ergue-se da camilha e vai sentar-se na tábua coberta pela manta a fim de receber o moço aspirante que entra com o seu séquito de parentes naires. Vêm brandindo as espadas nuas, com os rostos erguidos e os olhos postos em sua Alteza, lançando-se ao chão e levantando-se, para, alguns passos adiante, repetirem as reverências.
Nanak e o seu padrinho avançam três passos e perfilam-se diante do Samorim que tem à sua frente, sobre uma folha, dois fanões - moedas no valor
de vinte e dois reis, cada uma. “Se aquilo é a paga, estes nobres recebem fraco soldo, ganham menos do que eu!”, pensa o espião». Deana Barroqueiro, O Espião de D. João II, na Demanda dos Segredos do Oriente e do Misterioso Reino do Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-8092-58-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT