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«Economicamente imperava a ‘mediocritas aurea’. Havia a pobreza inevitável e as inevitáveis «pestilências» da época. Mas, em geral, o povo português já era, no século XV, auto-suficiente. Nos meados desse século, a Nação era mesmo uma das potências mais respeitáveis da Europa, como se pode aferir pelas negociações diplomáticas e pelas periódicas reuniões políticas. Já desde Pedro I e Fernando se estruturara em Portugal a burguesia, com o seu comércio sedentário, os seus estaleiros, o seu mercado fixo (interno e externo), os alicerces securitários, o seu equilíbrio económico, a substituir a rudimentar agricultura, pastoreio ou pesca. O artesanato, tecidos, ourivesaria, armas, ferramenta, etc., havia-se alastrado. As linhas de montagem naval já recebiam prémios pelas construções de maior tonelagem. O comércio marítimo, para o Norte da Europa ou do Mediterrâneo, firmara-se em tradição. Persistiam resíduos fenícios, na argúcia das transacções. A presença sefardínica, se nem sempre fosse útil à nossa comunidade, era, no entanto, um experiente exemplo a ilustrar o vulgo na traficância e um factor da movimentação de capitais. A arquitectura, com Mestre Afonso Domingues, e a pintura, com Nuno Gonçalves, estreavam obras-primas, as quais denunciavam ou o clímax duma laboriosa ascensão ou a súbita revelação de génios.
Foi neste proscénio surpreendente e portuguesíssimo que apareceu a “Casa de Avis”. Esta simboliza a imagem-síntese da original feição nacional, no dealbar do século XV. Abeiremo-nos da “Ínclita Geração” dos “altos Infantes”, como reza Camões. É pelo fruto que se conhece a árvore e... o húmus.
Os filhos da régia família, rebentos do ditoso casal, e também (como negá-lo?) expressões do meio ambiente, constituem a quinta-essência duma selecção de valores. Valores afinados e refinados. Valores biológicos. Valores psicológicos. Valores intelectuais, valores espirituais, valores na vida e na própria morte!
Todos tiveram, desde a infância, uma regra de vida, uma disciplina admiravelmente doseada, patenteada nas alusões circunstanciais dos cronistas. E, muito melhor, todos lhe obedeceram.
O seguinte flagrante duma situação doméstica elucida-o melhor que toda a análise e psicanálise. O rei já por vezes significara o desejo de armar cavaleiros os três Infantes mais velhos; porém, nas circunstâncias brilhantes e honrosas, de acordo com a sua posição;
- “ca via ante seus olhos taaes três filhos baroões fortes e mancebos como huüa jdade que pouco mais leuaua hum ante o outro que hum anno”.Aguardava apenas as pazes com Castela, disposto a “ordenar huüas festas rreaes que durem todo hum anno, pera os qüaaes”, dizia, “mandarey conuidar todollos fidalgos e gentiis homees que tiuerem jdade e desposiçom pera tal feito que ouuer em todollos rregnos da christandade e ordenarey que nas ditas festas aja notauees justas e grandes torneos e muy abastosos conuites seruidos de todallas viandas que se per todo meu rregno e fora delle possam haver. […]
O rei Duarte e os Infantes Pedro e Henrique, ansiosos como estavam por tal dignidade, confabularam repetidas vezes sobre os desígnios paternos. Consideraram a «alteza do sangue» que tinham, condição aristocrática essa da qual não sentiam orgulho leviano, antes lhes impunha o dever de acatamento que deviam a tal dignidade, outorgada por Deus. Suportaram a delonga, enquanto as pazes se não firmavam com Castela, na esperança, talvez, de partilharem de algum reencontro. Estabelecidas aquelas, perdida a preciosa oportunidade, decidiram ir falar a seu pai, El-Rei. Com gentil respeito lamentaram a falta de ocasião propícia para “rreçeber o estado de cauallaria”.
Festanças e folguedos, pouco lhes significavam.
Foi nessa altura que o vedor da Fazenda, João Afonso, sugeriu a tomada de Ceuta, que, além de grande metrópole comercial, tinha sido a base e cabeça de ponte, para assalto dos infiéis à Península. Uma espécie de Bizâncio do Ocidente, de projecção militar quiçá mais ampla. Os moços rejubilaram. El-Rei, achando embora razoável a proposta dos filhos entusiasmados, não anuiu de imediato; a ideia merecia mais ponderação». In Silva de Azevedo, O Príncipe Sem Coroa, Pontifícia Universidade de S. Paulo, Bertrand Irmãos, Lisboa, 1963.
Cortesia de Bertrand Irmãos/JDACT