terça-feira, 24 de abril de 2012

Inês de Castro. António C. Franco: Memória de Inês de Castro. «A madrugada esfriou definitivamente essas cinzas e ao acordar com os ouvidos atentos ao mar, o infante recordou um sonho que estava ainda preso à retina e à memória. Eram imagens flagrantes, mas límpidas na sua desconexão»



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A Guerra
«A construção deste touril na Atouguia foi como que o primeiro acto político de Pedro, e simultaneamente o seu primeiro acto simbólico. Nele Pedro está em corpo e em alma. Ele tanto é o sol negro da noite que o touro corporiza, como a força humana que está decidida a fitar de frente as trevas. Acto talvez gratuito, quer dizer acidental, esse acto revelou contudo, a frio, o seu destino futuro.
A aproximação do Natal trouxe de novo um retraimento interior. Encostava-se no paço às janelas que dão para Ocidente e fitava as ilhas. Peniche distinguia-se saliente e maciça sobre o lado esquerdo. Pensava no touril. Era um rectângulo de terra que parecia ter as dimensões do universo. Estávamos no Outono e a Lua banhava os campos. Os pescadores aproveitavam a serenidade destes últimos dias da estação para atravessarem o canal, que no Inverno se tornava intransitável. Passavam horas nas pedras mais salientes da ilha, onde tinham pequenos barracões de madeira, construídos há muitos anos. Era um esboço de colonização primária e um primeiro contacto humano com uma terra que se haveria depois, passados séculos, de tornar um pólo de desenvolvimento e atracção. O homem português, por outro lado, ensaiava também aí os primeiros passos dum contacto marítimo e povoador que haveria depois de se revelar de forma absolutamente universal. Peniche era então uma ilha habitada por gaivotas e outras aves marinhas. Ela exercia sobre os homens da costa um fascínio, que só os rigores do Inverno acalmavam. O Inverno fazia levantar as vozes do mar que se tornavam intransponíveis. O volume do mar dominava tudo, inclusive o próprio medo. Aproveitavam-se assim os últimos dias limpos de 1334 para revisitar as pedras da ilha, arrumar os barracões e armar os derradeiros laços na maré vazia. Os homens prendiam os barcos e não se afastavam dessa orla costeira, preferindo o arranjo rápido, em harmonia com o diminuto arco dos dias, às longas excursões pela lombada extensa da ilha. Tais excursões eram guardadas para Os meses de Verão, em que alguns desembarcavam até com pessoas de família ou com visitantes ocasionais do porto das naus da Atouguia.
Foi numa dessas rápidas embarcações que atravessava ainda o canal em Dezembro que o infante desembarcou em Peniche. Os homens riam-se para ele e alguns levavam os olhos quase rasos de lágrimas, enquanto remavam. Eram homens de olhos claros e de pele pergaminhada e branca, que se emocionavam com facilidade. Admiravam no infante o seu jeito popular e a sua facilidade viril que exigia um trato rude e áspero. Nessa noite ele dormiria num dos barracões da praia, por entre caixas armadilhadas, pilhas de rede e panos tingidos de castanho. Recolhiam-no no outro dia, pois as embarcações, nesta época do ano, regressavam sempre à Atouguia antes do anoitecer. As noites de Lua nova são noites em que se passa da expectativa à contemplação. A ideia de que a Lua é um outro sol e a noite um outro dia, dá aí lugar ã uma animação fantástica de estrelas, que contrasta ainda mais devido à pobreza inconforme que a escuridão da terra revela. Se a terra sofre uma quebra de luminosidade devida à ausência da Lua, o céu, por sua vez, encontra nas estrelas substitutos inesperados que parecem animar de vida o mundo. São as noites de Lua nova, noites em que os homens dormem duplamente recolhidos e em que apenas as estrelas, na conjugação extraordinária das suas formas, vivem.
Dormiu, por isso, o infante sossegado durante muitas horas. As noites nessa altura têm uma duração descomedida e pouco depois do meio-dia a tarde começa a declinar para Ocidente, afastando-se no seu rasto a luz. Nos dias límpidos de Dezembro é possível ver o sulco que o Sol deixa no céu e o clarão anoitecido e azulado, Cor de sombra, que desponta a Oriente. Olham-se das escarpas os vales da terra e vêem-se no horizonte as nuvens pálidas arrastar a face miúda da noite. Passam as últimas aves em direcção das planícies do Sul e a noite vem mostrar ao mundo a sua identidade húmida e marinha.
Ficaram na soleira do barracão as brasas acesas dum fogo que na solidão escura da terra aparecia como imagem crepitante dum céu povoado de estrelas.
A madrugada esfriou definitivamente essas cinzas e ao acordar com os ouvidos atentos ao mar, o infante recordou um sonho que estava ainda preso à retina e à memória. Eram imagens flagrantes, mas límpidas na sua desconexão.
Há uma figura de mulher que tem cabelos ondulados e líquidos como a água, apesar de serem da cor do fogo e parecerem arder como labaredas. É uma mulher que está no meio dos campos, como um turbilhão silencioso e que o salva de morrer envenenado numa sala onde ele está, no sonho, deitado, entre paredes estreitas. A mulher dá-lhe o seio moreno e Pedro, que estava deitado, levanta-se de olhos abertos. Desperta no interior do sonho.
Há sonhos que impressionam pelo enredo da história e o tempo do seu sucesso. Mas há outros que impressionam pela vitalidade das suas imagens, que nos surgem mais vivas e reais do que a própria realidade física que nos circunda. Um-sonho desses é então como uma ruína: levantam-se das suas paredes desconexas certezas inelutáveis, premonições inabaláveis. Mas é este tipo de sonho que nos predispõe a um contacto privilegiado com o mundo, pois ele é a revelação profunda duma existência encoberta que vive em nós. Conhecer esses seres é conhecer os seres que nos hão-de dar a mão, ajudando-nos a subir ou ajudando-nos a descer, conforme os desígnios do nosso ser, depois da morte. É uma corte fantástica que povoa os nossos sonhos e que se alimenta às vezes do nosso corpo. Essa mulher, revelada pela primeira vez nos sais de prata dessa noite, estava lá, como arcano. Que papel ela iria desempenhar na vida de Pedro era ainda impossível de dizer, tanto mais que a mulher, apesar de arrancada das vértebras mais interiores do homem, permanece sempre um segredo inviolável e distante. Seja como for, foi nessa noite que Pedro viu, pela primeira vez, a mulher, percebendo-a na sua lógica fatal e angélica, na sua lógica devoradora e instigadora, ainda que a impressão que isso lhe produzisse fosse demasiado instantânea para ter algum efeito preventivo».
In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990.

Cortesia de PE América/JDACT