jdact
«No dia 25 de Outubro de 1520, Coimbra engalanou-se pare uma festa retumbante. Havia já um bom par de anos que el-rei Manuel não visitava a cidade, mas sua presença fizera-se sentir pelas obras que se realizavam em várias partes da urbe, muitas delas sob o patrocínio régio. O monarca podia apreciar agora a renovação do Paço Real e a construção da nova capela anexa, dedicada a São Miguel, cujas obras ainda não tinham terminado, Estava também à vista a renovação do Mosteiro de Santa Cruz, cujos trabalhos também não tinham sido ainda concluídos, mas já permitiam a realização de uma grande cerimónia de Estado, programada para aquele dia preciso.
A cidade transformara-se nos últimos vinte anos, com novos edifícios que seguiam o gosto arquitectónico das construções régias, a que se juntava uma renovação das artes decorativas, imprescindíveis para o embelezamento das novas construções. O novo retábulo da Sé, realizado entre I500 e 1502 por encomenda do bispo Jorge de Almeida era um dos melhores exemplos desse movimento modernizador, que tocava com a mesma intensidade muitas outras localidades do reino. Oficinas de pintura e de escultura estavam cheias de encomendas nestes dias de prosperidade.
No meio de grande solenidade, Manuel I iria presidir à trasladação dos corpos dos primeiros reis de Portugal para seus novos túmulos, que ele próprio mandara preparar e que davam uma nova dignidade aos fundadores da nação. O Mosteiro de Santa Cruz havia sido um dos principais suportes da política do Fundador, e em 1502, quando passara por ali em jornada a Santiago de Compostela. O rei Manuel entendera que o edifício precisava de um grande restauro, em que se incluía a colocação dos corpos de seus antecessores em novos monumentos fúnebres, mais ajustados ao papel crucial que haviam desempenhado no nascimento e afirmação de Portugal como reino independente.
Ao longo de seu reinado, Manuel I sempre evocara com grande ênfase a figura de Afonso Henriques, e procurara relacionar o Santo Conquistador que tivera a graça de ver Jesus Cristo antes da batalha de Ourique, com sua auspiciosa subida ao trono e com os feitos extraordinários que seus súbditos alcançavam contra a mourama. Duarte Galvão, um de seus principais conselheiros, que falecera entretanto no mar Roxo, compusera uma crónica de Afonso Henriques, e no prefácio estabelecera uma relação directa entre os dois monarcas. Na propaganda manuelina o Fundador era o Alfa e o Emanuel era o Ómega, Afonso Henriques fora o responsável pelo princípio de um pequeno reino que ele mesmo agigantara ao vocacioná-lo para a destruição do Islão; Manuel I iria concretizar definitivamente essa vocação através da cruzada libertadora da cidade santa de Jerusalém, que ele esperava poder organizar brevemente.
A escolha da data para a cerimónia tinha um significado profundo. O dia 25 de Outubro assinalava mais um aniversário da conquista de Lisboa, o maior troféu que Afonso Henriques arrancara definitivamente das mãos dos mouros; além disso, porém, aquele dia 25 de Outubro do ano de 1520 assinalava igualmente o vigésimo quinto aniversário da subida ao trono de Manuel I. Por isso, embora as obras ainda não estivessem concluídas, o monarca arrastara a corre até à beira do Mondego para lhes mostrar, lado a lado, nesse dia comemorativo, o corpo santo do rei fundador e o da pessoa que cingia a coroa havia precisamente vinte e cinco anos.
O primeiro fizera do pequeno condado portucalense um reino independente e ambicioso, o segundo, tendo sido miraculosamente escolhido por Deus para completar o legado de seus antecessores, fizera do reino um império universal». In João Oliveira e Costa, O Império dos Pardais, Editora Temas e Debates, 2008, pág. 93-95, ISBN 978-972-759-993-6.
Cortesia Tema e Debates/JDACT