domingo, 29 de abril de 2012

Florbela Espanca: Parte I. O período em que viveu foi conturbado em Portugal, quase só houve tempo para mudanças, tanto a nível histórico-político, quanto cultural.

(1894-1930)
Vila Viçosa
jdact

«Nascida em 8 de Dezembro (o mesmo dia do seu suicídio), escreve os primeiros poemas por volta de 1915. A sua poesia por um lado liga-se a ambivalências finisseculares, por outro dramatiza a problemática do eu de um modo muito particular.
O Livro das Mágoas abre com um soneto decadentista por excelência, onde a mágoa, a dor e a saudade participam no mesmo universo convivencial de tortura e decadentismo. A tónica finissecular é-nos conferida pela propensão para o choro:

Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,
Chorai comigo a minha imensa mágoa,
Lendo o meu livro só de mágoas cheio!

No entanto, não menos importância do que a assumpção de uma tristeza intrínseca, é a definição de um espaço poético original e único, um espaço de eleição diríamos melhor. Esse espaço é definido pela própria poetisa:

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,

E neste entrecho surge-nos uma primeira contradição. A poesia recém-eleita a uma área de primazia é também e sobretudo a poesia do nada:

Acordo do meu sonho… E não sou nada!…

A relação do poeta com a sua escrita é dolorida, chorada:

Calaram-se os poetas, tristemente…
E é desde então que eu choro amargamente
Na minha Torre esguia junto ao Céu!…

Aliás, é porque se é poeta que se alcança a Dor. A poesia é base de definição de uma atitude de sofrimento.
Há um certo deslumbramento por uma sorte não alcançada que é ainda e sobretudo a sugestão de um local de eleição:

Eu sou a que no mundo anda perdida,
sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada… a dolorida…

Um pessimismo tão fundo enleia-se na capacidade de sofrimento único, desde a alusão à vivência sozinha no «Castelo da Dor», até à categoria de Castelã da tristeza a que se alcandora.
Problematizemos a relação que existe entre a poetisa e a escrita. Por um lado, existe a noção de que o Poeta é um sonhador, um criador de ilusões. Por outro, a de que poesia é a palavra iniciática, mas inaudível para a maior parte das pessoas. O poeta é um ser solitário por excelência. É aquele que fala da sua Dor e a transporta para um infinito. Quanto maior é o génio, mais pode transportá-lo a uma outra cultura, a uma maior capacidade de divinização. A vida é uma desgraça que se assume com imensa dor, uma infinita capacidade de a chorar. Há uma tomada de consciência de carácter trágico:

Poeta, eu sou um cardo desprezado,
A urze que se pisa sob os pés.
Sou como tu, um riso desgraçado!

Um constante conceber da vida como uma antecâmara da morte: esta não escolhe idades. Preexiste a um estádio de vida. Encontra-se sempre latente. A morte é a permanente temática em Florbela Espanca:

É tão triste morrer na minha idade!

E aqui remetemo-nos para a poesia finissecular de um António Nobre, cujos constantes apelos à morte produzem uma espécie de elegia dos comportamentos, suicídio antecipado, morte desejada. Penitência que se arranja na soturnidade das ambiências:

E os meus vinte e três anos… (Sou tão nova!)
Dizem baixinho a rir: “Que linda a vida!…
Responde a minha Dor: “Que linda a cova!

Morte física ou onde se quebra o elo com a morte religiosa. Em Florbela, se existem laivos de religiosidade é mais num sentido místico, na procura de uma infinitude, de algo que escape a uma visão perplexa e inquieta. Mas descodifiquemos o carácter profundamente sensual desta poesia, onde as mãos e os beijos adquirem uma forte conotação erótica. É uma sensualidade que tanto pode tocar as raias de uma entronização de Eros, como pode diluir-se numa tristeza de um amor perdido ou não correspondido:

Beija-me bem!… Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei prà minha boca!…

Os estados excessivos de aniquilamento que caracterizam a sua poesia são eles próprios denunciadores de uma vida tumultuosa. Assim as paixões e o modo como são vividas.

Benditos sejam todos que te amarem!
Os que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão, fervente, louca! 

A paixão é um estádio que tem de ser vivido num arrebatamento místico, mesmo que não haja qualquer correspondência com o real. De «pathos» se trata na ânsia de se chegar a uma perfeição, limbo existencial que toca um lirismo profundo. Mas como é vivido o quotidiano? Sob o tédio que remete não ocasionalmente para um «lago plácido dormente».

Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo de viver!
E é tudo sempre o mesmo, eternamente:
o mesmo lago plácido dormente…
E os dias, sempre os mesmos, a correr…

Daí se nota a mesma imperiosa atitude de radicalismo. Entre a morte que se projecta num elanguescimento dos sentidos, num torpor algo mediúnico e a vida do eros, enlouquecimento do ser.

Gosto da noite imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!…

O pendor nocturno revela-se nas tonalidades escolhidas, desde os tons de roxos até aos soturnos negros. A propensão para a morte, a noite, o negrume, a tristeza relva desse desequilíbrio entre os thanatos e o eros.
No Livro de Soror Saudade prolongam-se as grandes temáticas que entrevíramos no Livro de Mágoas. O eros é mais forte que o «thanatos», porventura:

Amo-te tanto! E nunca te beijei…
E, nesse beijo, Amor, que eu não te dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

E é em torno do Eros que se encontra no labirinto das palavras uma chave para esse eu tão problemático. Talvez um dos sonetos mais labirínticos se condense em a noite que desce sobre os olhos cansados, adormecendo o ser. Para além desta ideia encontra-se um poema de grande sensualidade:

A noite vai descendo, sempre calma…
Meu doce Amor tu beijas a minh’alma
Beijando nesta hora a minha boca.

Neste poema encontram-se alguns dos traços mais interessantes da poesia de Florbela. Por um lado, o pendor radical e afectivo pela noite, pelo crepúsculo. Por outro, a noite, triste e pessimista que se avizinha, transforma-se em embriaguez e loucura, em algo que se plasma no genesíaco, na embriaguez dos sentidos. A noite hcalma pressente o enlace dos amantes. Este poema radicaliza de um modo muito original a simbólica da noite, na sua proximidade da morte, abeirando-se calma e dramaticamente e transmudando-se numa apoteose de corpos que se amam». In Cecília Barreira, Instituto Camões.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT