domingo, 22 de abril de 2012

Alfredo Alves. D. Henrique o Infante. Memória Histórica: Parte VIII. «O Prior viu tudo e notou, como João I lhe incumbira; o sen olhar experimentado media a altura das muralhas e a robustez das quadrelas, ao passo que a sonda de Afonso Furtado, descia, descia, cautelosamente, a devassar o ancoradouro. Excelente era este; todos os navios lá podiam entrar»



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A Tomada de Ceuta
«Era preciso em primeiro lugar estudar o objectivo das operações : — Ceuta. Que tal seria a grandeza da cidade? Quantos defensores abrigaria em seus muros? Era preciso reconhecer as praias e lançar a sonda a ver que tal seria o ancoradouro.
Informações não faltavam era certo; lá no Algarve eram muitos os pescadores e mareantes que levavam suas barcas boiar um pouco a sombra das alvadias muralhas d'aquela cidade querida dos filhos do ‘Propheta’. Carecia-se, não obstante, para a expedição, de um observador inteligente, sagaz e perito, que fosse e visse e notasse tudo, de maneira a resolver todas as dúvidas e a dissipar todas as hesitações.
Para esse fim João I escolheu o Prior do Hospital, Álvaro Goncalves Camello, homem que já o havia atraiçoado, era certo, e de quem todos desconfiavam, mas que possuía como nenhum o carácter dissimulado já requerido na diplomacia d'esses tempos. Iria em uma nau do comando de Afonso Furtado, capitão do mar. Aonde? A Ceuta, sabia-se. Com que pretexto? Ao principio custou a encontrá-lo, mas depois apareceu. Recebera João I uma embaixada da rainha da Sicília, viúva de Martinho I, que pretendendo evitar a união do seu reino ao Aragão, o que veio a suceder, mandara pedir ao infante Duarte para seu segundo marido.
João I ficou de responder, o que fez por intermedio do Prior. Não concederia a D. Branca da Sicília seu filho Duarte, mas oferecer-lhe-ia o infante Pedro. Resposta bem pouco delicada, era certo; e João, ladino de seu natural, conhecia que o Prior voltava com uma recusa a esse câmbio de maridos.
Mas pouco ou nada se importava; a embaixada era um pretexto apenas para o reconhecimento de Ceuta. Foram portanto os dois comissionados.
A rainha da Sicília, como se previa, ficou despeitada, despediu o embaixador e de si para si pensou que o Rei de Portugal era o homem menos atencioso de então. E o Prior, rindo à custa da pobre viúva, lá veio a Ceuta observando.
Estendia-se a cidade de oeste a leste, em frente a Algeciras, (“a ilha verde”), subindo e descendo as suas colinas confinantes, com suas casarias brancas, de terraços, acima dos quais os limoeiros, aqui e ali, faziam surgir as copas verdes esmaltadas dos pomos cor de canário; e na região vizinha, a que os naturais davam o nome de “Balyounich”, as águas espadanavam nas fontes e nos ribeiros, os pastos mostravam-se estendidos em alfombras veludosas, e de onde em onde o berbér tisnado, com o seu ‘alvadio cadawir’ vestido e enrolado na cabeça o ‘carazi’ indolentemente cultivando a ‘cana sacarina’ nos terrenos mais quentes.
Ao oriente da cidade surgia-lhes uma montanha, a que o mouro dava o nome de “DjabaloT-Mina” bem alta e fragosa.
E no cimo d'ella, correndo uma chapada, os muros erguidos por Mohammed-Ibn-Abi-Amir deslumbravam na sua brancura de jaspe. Ficava Ceuta em uma península ligada por um estreito istmo; as águas azuei do Estreito, o “az-Zocac” serviam de espelho às suas torres e muralhas, ao norte; e ao meio dia o mar de “Bosul” vinha quebrar as suas vagas sobre as praias voltadas às solidões do Atlântico.
E sobre essas ondas centenas de barcos divagavam na sua faina de pesca; os harpões vibravam-se certeiramente aos atuns (thon), e das recônditas profundezas do mar extraíam-se os corais, como árvores da cor das româs.

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O Prior viu tudo e notou, como João I lhe incumbira; o sen olhar experimentado media a altura das muralhas e a robustez das quadrelas, ao passo que a sonda de Afonso Furtado, descia, descia, cautelosamente, a devassar o ancoradouro.
Excelente era este; todos os navios lá podiam entrar.
Voltaram os dois, e um domingo, a nau dos embaixadores veio Tejo acima, de encontro á maré, flamulas serpeando nos mastros com suas cores garridas, e grande número de trombetas tocadas, à proa, em alegria. Desembarcaram, olhados de perto pelo povo, nesse dia em descanso e voltando da missa a essas horas.
Foram logo a Sintra, ao rei. Este dissimulou perante a corte e ouviu, rindo-se intimamente, o recado dos embaixadores. Mas estes, a sós com João I e os Infantes, falaram depois acerca de Ceuta.
Afonso Furtado declarou o ancoradouro excelente, e contou ali, imediatamente, profecias fagueiras ao cometimento: que em menino ele fora com seu pai a Ceuta,— reinava então Pedro I, lembrara o capitão, e afastando-se um pouco do seu progenitor fora ter a uma fonte aonde uns cavalos ali tinham vindo, devagar, a beber. Parou a olhar os animais, curioso como criança, e nisto um velho ali lhe aparecera e perguntou-lhe:
- De onde és, menino?
- De Portugal.
- E quem é o teu Rei?
- D. Pedro.
- E sabes os nomes de seus filhos?
- Sim. Chamam-se Fernando, João e Diniz.
- E mais nenhum?
- Nao. - respondera. Mas depois lembrou-se do Mestre de Avis, a quem agora dava o titulo de Rei; Lembrou se e disse ao velho:
- D. Pedro tem mais outro filho, - o Mestre de Avis.
E o ancião arrepelou suas barbas em desespero, e chorando. Porquê?
Ele então proferiu gravemente:
- Eu choro porque esse filho, que pequeno ainda é, será o primeiro a enterrar o conto da sua lança nas areias do Moghreb; os seus cavalos hão-de vir beber também a esta fonte, como fazem aqueles que são montados pelos filhos do Profeta; e esse filho do Rei de Portugal será “como huma pequena faisca, de que se levanta muy grande fugueira”.
João I riu se, mas intimamente não deixava de acreditar nos vaticínios. A Idade -Média em tudo sentia a previsão e o agouro». 
In Alfredo Alves, D. Henrique o Infante, Typografia do Commercio do Porto, 1894G 286, H5A53, Porto.

Cortesia de Typografia do Commercio do Porto, 1894/JDACT