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Portugal e China: Imaginário recíproco
Imagens de Portugal e dos Portugueses
«Desta imagem profundamente negativa decorreu naturalmente a
preocupação de que os portugueses pudessem pôr em causa a segurança da própria
China, quer pela reconhecida superioridade da artilharia portuguesa e da nossa ‘arte da guerra’ em geral, quer pelo perigo
que representaria uma eventual associação com os piratas japoneses e rebeldes
chineses.
No decurso do segundo quartel do século, porém, e como já se referiu, a
convergência de interesses económicos levou a que a natureza dos contactos se
normalizasse, e através dela, também a imagem evoluiu para mais realistas
avaliações. Os chineses começaram a aperceber-se que, apesar de bárbaros e sem
maneiras, e apesar de eventuais perigos estratégicos, no trato e no quotidiano
dos contactos, na gestão dos interesses comuns, os portugueses tinham comportamentos
previsíveis, normais. Macau surge, à entrada da segunda metade do século,
frágil, precário. Será necessário aguardar mais uma década para que os chineses
se apercebam da validade do contributo que os portugueses também podiam dar
como “estabilizadores” e pacificadores da orla marítima setentrional chinesa.
Entre o surgimento de Macau e a definição de uma política chinesa coerente em
relação a nos, já nos alvores do século XVII, não admira assim que, sempre com
reservas, a imagem tenha melhorado, e que tenha sido possível a Lin Hsi-Yuan
escrever:
- “(...) the Chinese people are anxious to do business with them. The Portuguese have not invaded our borders, have not killed our people, and have not robbed us of our property. Furthermore, when they first arrived they were troubled by the pirates who infested our coasts and so they drove away the pirates who are afraid of them (...)”.
Esta descrição será excessivamente benevolente e factualmente ligeira e
não traduz o sentimento geral. Pouco importa: mostra num texto impensável umas décadas
antes, a evolução da imagem pelo menos nalguns autores.
O surgimento de Macau está estreitamente ligado à imagem, ou melhor, à
evolução da imagem, que a elite chinesa tinha dos portugueses e de Portugal. As
circunstâncias que permitiram que o Território se definisse à partida com as
características que vêm até ao presente nos seus fundamentos, incluindo as motivações
que levaram os portugueses a esforçar-se para que tal acontecesse e assim se
mantivesse ao longo dos séculos, podem resumir-se a dois vectores constantes: convergência
de interesses económicos e flexibilidade na definição do estatuto jurídico do
território. Que a convergência de interesses esteve na base e permitiu a
permanência portuguesa em Macau resulta logo à partida do ‘Assentamento’, de
Leonel de Sousa, de 1554, documento pelo qual se constata o concluir de um
processo de umas duas décadas, gerador das condições propícias ao nascimento de
Macau uns dois a três anos depois; e a flexibilidade quanto ao estatuto
jurídico verificou-se de parte a parte, não sem que tenha havido naturais
dificuldades de percurso: desde o ‘foro’, pago aos mandarins, às taxas sobre os
navios, às alfândegas, ao século XVIII, em que Portugal e a China se assumiam
como potências mundiais e tal se reflectia no fausto das embaixadas à Corte do Filho
do Céu, em Pequim, ao arrojo de Ferreira do Amaral, ao período dos Tratados da
segunda metade do século passado até ao presente, a situação de Macau face ao “Ins
Gentium” e ao Direito Internacional caracterizou-se sempre por uma certa
indefinição, percebendo ambas as partes que a procura de uma total clareza nos
títulos jurídicos sobre Macau levaria à sua extinção.
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No presente, tal ambiguidade secular de certo modo extravasou para a ‘Declaração
Conjunta de 1987’, onde se reconhece a soberania à China e o seu exercício a
Portugal até 1999, e até 2049 um estatuto peculiar em que, passando o exercício
da soberania também a ser chinês, está porém excluído no território ‘o sistema
e as políticas socialistas’. Situação cuja peculiaridade permite afirmar que,
ao excluir à partida a possibilidade de em Macau vigorarem certos sistemas
políticos até 2049, tal corresponde a uma “capitis diminutio” da soberania, que
assim fica àquem da sua plenitude; e que só encontra semelhanças nos acordos da
segunda metade do século passado, em que Macau era definido pelas partes com
estatuto igual ao das outras possessões ultramarinas portuguesas, mas não
podendo Portugal alienar o Território sem consentimento da China.
NOTA: Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre Macau, de 1987, Anexo I,
I, “(...) após o estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau
[1999] não serão nela aplicados o sistema e as políticas socialistas,
mantendo-se inalterados os actuais sistemas social e económico, bem como a
respectiva maneira de viver, durante cinquenta anos”.
“Tratado de Amizade e Comércio entre Portugal e a China, de 2 de
Dezembro de 1887, art.º III, Portugal confirma na sua íntegra o art.º 3 do
protocolo de Lisboa sobre o compromisso de nunca alienar Macau sem prévio
acordo com a China. No mesmo Tratado, art.º II, se confirmava na perpétua
ocupação e governo de Macau, e suas dependências, por Portugal como qualquer
outra possessão portuguesa. Cf., em trabalhos recentes, Lourenço Maria da
Conceição, “Macau entre dois Tratados com a China”, Macau, ICM, 1988, e José
Calvet de Magalhães, “Macau e a China no Após Guerra”, Macau, IPOR, 1992.
A complexidade do estatuto e dos meandros da presença e acção portuguesa
ao longo de mais de quatrocentos anos está parcialmente na base de uma tendência
para as explicações simplistas quanto ao surgimento de Macau. Tal tem afectado
sobretudo a historiografia moderna, e mais ainda a percepção em Portugal de
como nasceu Macau. É corrente dizer-se que foi dádiva do Imperador da China aos
Portugueses pela ajuda prestada no combate aos piratas». In João de Deus Ramos,
Portugal e a Ásia Oriental, Fundação do Oriente, 2012, ISBN 978-972-785-102-7,
Comunicação apresentada à Academia Portuguesa da História, 5 de Abril de 1995.
Cortesia da F. Oriente/JDACT