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«Mas,
como se não bastasse o ser a Fortuna uma entidade tão caprichosa, não há quem dela
não espere alguma coisa! A ambição, o “pretender do mundo fama e fruto”, faz
com que ninguém lhe escape, nem mesmo quem professa desprezá-la!
Outro
espanto maior aqui me enleia.
Que, corri
quanto Fortuna tão profana
Com estes
desconcertos senhoreia,
A nenhuma
pessoa desengana.
Não ha
ninguém que assente nem que creia
Este discurso
vão da vida humana,
Por mais
que philosophe, nem que entenda,
Que algum
pouco do mundo não pretenda.
Diógenes
pisava de Platão
Com seus
sórdidos pés o rico estrado,
Mostrando
outra mais alta presumpção
Em desprezar
o fausto tão prezado.
— Diógenes,
não vês que extremos são,
Esses
que segues, de mais alto estado?
Pois,
se de desprezar te prezas muito,
Já pretendes
do mundo fama e fruito
Em seguida
o poeta, passando por alto várias categorias de ambiciosos, interpela directamente
César e Platão, e pergunta-lhes de que lhes valeram os trabalhos em que quiseram
envolver-se. O primeiro morreu às mãos dos seus; o segundo não conseguiu eximir-se
aos erros da gentilidade.
Mas pergunto
ora a César esforçado,
Ora a
Platão divino, que me diga,
Este
das muitas terras em que andou,
Aquelle
de vencê-las, que alcançou?
César
dirá; Sou digno de memoria;
Vencendo
povos vários e esforçados,
Fui monarca
do mundo, e larga historia
Ficará
de meus feitos sublimados.
— É verdade;
mas esse mando e gloria
Lograste-o
muito tempo? Os conjurados
Bruto
e Cassio dirão que, se venceste
Emfim,
emfim às mãos dos teus morreste.
Dirá Platão:
Por ver o Etna e o Nilo,
Fui a
Sicilia, Egypto e outras partes,
Só por
ver e escrever em alto estylo
Da natural
sciencia e muitas artes.
— O tempo
é breve e queres consumi-lo,
Platão,
todo em trabalhos? E repartes
Tão mal
de teu estudo as breves horas.
Que emfim
do falso Phebo o filho adoras?
E afinal
de que vale a ambição? Para que servem os trabalhos a que ela obriga? Porque é que
o homem se há-de submeter aos revezes da fortuna? Lá vem a morte, que tudo inutiliza.
A alma terá mais em que ocupar-se e o corpo já nada sente.
Por quanto,
dês que vive já apartada
A alma
desta prisão terrestre e escura,
Está em
tamanhas cousas occupada.
Que da
fama que fica nada cura,
E o corpo
terreno sente nada
O Cynico
dirá se por ventura
No campo,
onde lançado morto estava,
De si
os cães ou as aves enxotava.
Mas se
a Fortuna, que é cega, sobre todos procura exercer o seu império, como poderemos
escapar-lhe?
Para os
que “têm baixa a fantasia”, há só um meio: é nunca se meterem em “grandes cousas”.
Quem tão
baixa tivesse a phantasia.
Que nunca
em mores cousas a mettesse,
Que em
só levar seu gado á fonte fria,
E mungir-lhe
do leite que bebesse,
Quão bem-aventurado
que seria!
Que, por
mais que a Fortuna revolvesse.
Nunca
em si sentiria maior pena.
Que pesar-lhe
de a vida ser pequena.
Veria
erguer do sol a roxa face,
Veria
correr sempre a clara fonte,
Sem imaginar
a agua donde nace,
Nem quem
a luz occulta no horizonte;
Tangendo
a frauta donde o gado pace,
Conheceria
as hervas do alto monte;
Em Deus
creria, simples e quieto,
Sem mais
especular algum secreto.
Os outros,
“os que não têm baixa a fantasia, só podem evitar os golpes da Fortuna,
achando-se num estado semelhante ao de Trasiláo».
In
José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64
1910 C1 Robarts/.
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