Cortesia de José Rodrigues
«Porque a memória é mais forte que o esquecimento, e porque o tempo não é mais do que uma categoria de lembranças, aqui está este meu almanaque, para vivenciar os acontecimentos do passado.
Na peregrinação a Compostela, que é a vida, de bornal de romeiro e de cabacinha, o destino, no seu determinístico movimento, estendeu-me generosamente o seu tapete, liso, aparado e aveludado, emprestando-me o futuro à ditadura venturosa do acaso dourado.
Foi assim que, por via da senda que me bordeja a vida, na travessia das hipérboles dos dias e dos acontecimentos, cheguei a Marvão, quando noviciado da minha vida profissional.
Tudo aconteceu quando, cursado, quis ser notário, opção que nasce e se segura em referências do tabelião de meu avô, cujas impressões me marcaram, quando menino e criança.
Estruturado e embainhado por dentro dos movimentos do universo rural, de que sou nascido, a figura do notário, homem maior em todos os redondos da Terra, na honradez e na verdade, namorou-me a vocação para um plano de vida, verdadeiramente aparelhado para o meu espírito quente, e apetitoso para escrutínios de declarações, de que a minha boa fé devia dar testemunho inquebrantável e indesmentível.
Os arcanos da mística dum projecto são mais elementares e essenciais que a sua execução. Com estandarte levantado, a nau, à maneira desafogada dos gregos diante do mar, vai navegar mais à costa, mais ao alto, ao porto longínquo desejado. Com os guiões içados, avançaram, de vitória em vitória, os exércitos romanos para vencer o cartaginês Aníbal.
Com os tambores a ressoar dentro de mim, segui as vozes do comando a que não presidia, obedecendo, então, como agora, às clemências e inclemências do destino.
Apeei-me às portas de Marvão, parado, à escuta, como mendigo, depois de rezar o padre-nosso, crente fervoroso de que a esperança azula o futuro.
E Marvão abriu-me as portas, como quem abre destinos, vestindo-me da dignidade e do mantelete de cidadão honorário da Vila.
Desenho de Marta Belo
Esta carta não é um documento antropológico, mas o florilégio dos meus enredos e enlaces sentimentais, da minha estanciação em Marvão. Utilizando a paráfrase de Pêro Vaz de Caminha, saibam todos quantos a lerem que devem tomar a minha ignorância por boa vontade, e creiam bem por certo que, para lindar nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Só quero dar conta da cor do derramamento das minhas emoções. Intramuros, tentei esteiar a minha vida em Marvão. Entrando nas portas de Ródão, em dia escuro e de chuva morrinhenta, que acinzentava o dia e antecipava a noite, com as casas e a Vila a parecerem mais de um castelo instalado nas nuvens, que assente na terra, as mas sem gente e invadidas por hordas sucessivas de nevoeiros densos e cada vez mais espessos, socorri-me da primeira silhueta que se cruzou comigo no largo do Pelourinho, tentando saber onde era o Cartório.
Saiu-me à resposta, logo e de propósito, a esposa do ajudante, que me deu a informação, mas acrescentando que ele estava muito ocupado e que, se fosse para marcar escrituras, era complicado, talvez fosse melhor ir a outro lado, porque lá não havia vaga. Amoleci a senhora, dizendo quem era e que vinha ver as instalações, nomeado que fora notário da Vila.
Assustada com a notícia com que não contava, desmultiplicou-se em fazeres e desfazeres, para ser solícita pala comigo, penhorando-me juras sobre juras acerca da valia e qualidades do bom colaborador que eu ia encontrar, que não era por nada, mas, por acaso, era o seu marido». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.
Com a amizade de JCM
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT