sábado, 14 de abril de 2012

José Mattoso. A Escrita da História (teoria e métodos). «Os modelos e conceitos são como que os fios condutores que sugerem os elementos a procurar e propõem hipóteses interpretativas, […]. Permitem a definição das normas e das coerências a partir das quais se detectam os desvios, que, por sua vez, terão de ser interpretados e explicados em função de conjunturas temporais ou espaciais»



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A Escrita
«E todavia, a descoberta da harmonia da História não é o resultado apenas de uma espécie de revelação directa e intuitiva. A intuição é normalmente indizível. Em História, para poder traduzi-la com alguma possibilidade de persuasão, é necessário apoiá-la em longas análises e na investigação acumulada por outros exploradores do passado, durante muitas e muitas gerações. Aqui, convém referir rapidamente alguns elementos técnicos da metodologia histórica; cujo uso é tão indispensável aos historiadores como o estudo da composição, da harmonia cromática e do domínio do pincel o são para o pintor. Sem eles, a inspiração nada produz de interesse.
Quero-me referir, por um lado, aos processos de classificação dos dados históricos, sejam as séries de factos ou de preços, sejam as representações cartográficas que permitem visualizar a distribuição dos fenómenos no espaço, sejam ainda os gráficos, que ajudam a definir as tendências sincrónicas ou diacrónicas. Tudo isto pressupõe a recolha laboriosa do material histórico em fichas, por meio das quais ele se selecciona dos documentos examinados. Mas para que tanto a recolha dos dados como a sua classificação não sejam meramente empíricos, têm de se utilizar modelos e conceitos, sobretudo os já aperfeiçoados pelas outras ciências humanas. São eles que determinam a hierarquia dos fenómenos, as suas relações teóricas, as suas funções e a sua articulação. Os modelos e conceitos são como que os fios condutores que sugerem os elementos a procurar e propõem hipóteses interpretativas, cujo fundamento e solidez terá de se verificar com o material empírico. Permitem a definição das normas e das coerências a partir das quais se detectam os desvios, que, por sua vez, terão de ser interpretados e explicados em função de conjunturas temporais ou espaciais.
Todavia, o esquema metodológico orientador deste trabalho não é apenas de natureza científico, ou seja, lógico, racional e discursivo. Tem de se inspirar também nos processos da imaginação e da perspicácia. E preciso detectar as anomalias, fazer falar indícios mudos, acumular provas, inventar formas indirectas de revelar o que os documentos não dizem abertamente. Darei um ou dois exemplos. Como se pode saber a população de um país antes da era estatística? (Isto partindo do princípio não tanto que a questão constitui em si mesma o objecto final da pesquisa histórica, mas que, sem esse dado, dificilmente se interpretarão os movimentos de massas.) Na Idade Média não se encontram nunca informações directas. Quando muito, em alguns lugares, existem dados sobre o número de casais, os dízimos ou outros dados quantitativos do mesmo género, mas nunca em levantamentos completos nem em séries contínuas. Todavia, com a ajuda destes dados e acumulando indícios indirectos, como o aumento do número de paróquias rurais ou urbanas, o registo das terras desbravadas, o aparecimento de novos topónimos, a extensão ou contracção das áreas urbanas, e outros elementos do mesmo género, ficamos a saber não propriamente números exactos, mas certas ordens de grandeza. Com alguma sorte, podemos datar e localizar aproximadamente os ritmos de crescimento ou as depressões demográficas.
Os documentos também nada dizem acerca do comportamento sexual normal das populações. Mas nem por isso os historiadores se resignam a ignorar tudo a este respeito. Estudam os penitenciais que registam as reparações exigidas dos pecadores, os sermões que mencionam os vícios do tempo, os romances e poesias com as suas alusões claras ou ocultas, os símbolos e metáforas usadas para definir a relação entre o masculino e o feminino, e assim sucessivamente. A antropologia moderna, sobretudo as observações feitas junto dos povos ditos primitivos, fornecem algumas hipóteses interpretativas e ajudam a procurar os indícios teoricamente mais significativos. Os resultados podem ser magros, mal alguma coisa se consegue. A sua verosimilhança depende da articulação com os conhecimentos anteriormente adquiridos acerca da época, da região onde se observam os fenómenos, do estrato social a que se referem.
A dificuldade da tarefa estimula muitas vezes a perspicácia da busca. O trabalho histórico transforma-se então em desporto, numa autêntica aventura exploratória, quando não numa tarefa de detective. Encontradas as pistas, apanhada a caça, detectado o responsável. é preciso ainda demonstrar o que se descobriu, fazer os relatórios, passar à fase da escrita, da comunicação. É preciso transmitir o que se encontrou. Têm de se distribuir os tesouros desenterrados». In José Mattoso, A Escrita da História (teoria e métodos), Imprensa Universitária, editorial Estampa, Lisboa, 1988.

Cortesia de Imprensa Universitária/JDACT