domingo, 1 de abril de 2012

Crónica Esquecida d’el rei João II. Seomara Veiga Ferreira. Leituras. «… um Maio quente e brilhante, muito calmo, que parecia prognosticar um sereno Verão sem angústias, o Infante D. Pedro saiu de Coimbra com uma hoste de seis mil homens, nada parecia indicar, apesar de tudo o que acontecera antes, que o desenlace fosse o que se concretizou junto à Ribeira de Alfarrobeira uns dias mais tarde»


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O Ciclo do Dragão
«Os embarcadiços, com as grandes sacas de couro às costas, entravam nas tabernas do porto ou comiam bocados de peixe ou carne cozidos ou assados na rua, pelo mulherio, par a par com miseráveis vadios, mercenários da fortuna e todos os réprobos do mundo que chegam a Lisboa, vindos de todos os recantos, procurar fortuna. A Rua Nova d'El Rei, os arrabaldes, os campos de verde e ouro, onde os frutos amadurecem, estalam como fogos, em Mafra, Alenquer, Colares, nos flancos poderosos, azuis e névoa da Serra da Lua... O vinho de Azóia, Atouguia, o quente vinho maduro e encorpado da Lourinhã, que era servido também na mesa real, os olivais, as hortas e os pomares, o abençoado horto de frei Jerónimo, o seu pequeno “scriptorium” onde o papel, os pergaminhos, o desenho minucioso, fulgurante e doce das iluminuras se misturavam com o dos estranhos ícones dos frades coptas que estão por cá desde o tempo de El Rei Afonso V, se é que, entretanto, não regressaram ao Norte de África, dos Filhos da Lua do Egipto, dos milagrosos e secretos irmãos de Alexandria... O ‘atanor’ de mestre Tadeu e aquelas letras que ele pacientemente lavrou com o seu punhal veneziano, que Abravanel lhe ofereceu, no assento da chaminé em madeira de carvalho: 
  • ORA, LEGE, LEGE, RELEGE, LABORA ET INVENIES

E a Fénix de mil anos que envolve o adepto com as suas portentosas asas da sabedoria... A Rua Nova d'El Rei com os seus varandins e balaustradas pintadas de vermelho, branco, azul ou apenas de madeira polida pelo tempo, o sal, o sol e a poeira dos séculos... O Sino de Correr que das oito às nove tangia para o recolher das gentes que cruzavam as ruelas onde estalavam rixas, palavrões, o gargalhar dos bêbados ou o linguajar rude de algum flamengo ou borgonhês, de algum veneziano em busca de uma rameira da sua terra, pois elas vêm também com os barcos onde carregam os seus males, as suas alegrias, os seus amores, as suas tristezas, as suas esperanças como todos nós.
o olhar arguto e imensamente triste do Rei naquele momento único da minha vida, sob a azinheira, a segurar na mão inchada e trémula o púcaro da água. Esse olhar vai hoje, finalmente aqui, em Nápoles, em frente desta cidade magnífica, falar comigo para a eternidade. Foi esta a promessa que fiz e vou cumpri-la. Assim o Senhor me ajude. Assim o Senhor me ajude.


Cortesia de purl

Désir ou o Canto do Cisne
Quando no início de Maio de 1449, um Maio quente e brilhante, muito calmo, que parecia prognosticar um sereno Verão sem angústias, o Infante D. Pedro saiu de Coimbra com uma hoste de seis mil homens, nada parecia indicar, apesar de tudo o que acontecera antes, que o desenlace fosse o que se concretizou junto à Ribeira de Alfarrobeira uns dias mais tarde. No dia anterior o Infante, conhecido e respeitado em todas as Cortes europeias, “Senhor das Sete Partidas” e que, inclusive, tinha mirado o fulgor áureo da Jerusalém terrestre na companhia do seu grande amigo e irmão de armas, o fiel Avranches, recebera um aviso, breve mas angustiado, da filha, aquela rapariguinha muito amada, de cabelo claro e esguia como ele, que herdara do sangue inglês a aparente fragilidade dos traços do rosto, mas na alma forte a persistência ibérica e mediterrânea dos velhos senhores príncipes de Aragão e da Catalunha.
Nessa carta, Isabel, filha do Infante e de D. Isabel herdeira de Jaime, senhor de Urgel, o “Desditoso”, alarmada, avisava o pai do risco que corria se rebentasse um afrontamento entre as hostes do duque de Coimbra e as do seu primo e marido Afonso, o quinto do nome, então um jovem, adolescente tímido, mas voluntarioso, bem-intencionado e mal aconselhado, todo manobrado pelo velho Barcelos duque de Bragança, aquele difícil e conflituoso tio Afonso já muito velho e anquilosado que nunca perdoara ao pai, o bom João de ínclita memória e à madrasta, aquela filha do orgulhoso Gaunt, D. Filipa, a sua bastardia e o facto de não ter cingido a Coroa de Portugal, embora D. Filipa tivesse sempre protegido sua mãe, D. Inês Pires...». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT