segunda-feira, 30 de abril de 2012

A Cidade Antiga. Estudo sobre o Culto, o Direito da Grécia e de Roma. «Não era mesmo necessário ter sido homem virtuoso: tanto era deus o mau como o homem de bem; somente o mau continuaria na sua segunda existência com todas as suas más inclinações já reveladas durante a sua primeira vida»



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O Culto dos Mortos
«Desde os mais recuados tempos, deram estas crenças lugar a normas de conduta. Como, entre os antigos, o morto necessitasse de alimento e de bebida, concebeu-se ser dever dos vivos satisfazer-lhe esta sua necessidade. O cuidado de levar aos mortos os alimentos não esteve a cargo do capricho ou dos sentimentos variáveis dos homens; foi obrigatório. Assim se estabeleceu toda esta religião da morte, cujos dogmas cedo desapareceram, durando, no entanto, os seus ritos até ao triunfo do cristianismo.
Os mortos eram tidos como entes sagrados. Os antigos davam-lhes os epítetos mais respeitosos que podiam encontrar no seu vocabulário; chamavam-lhes bons, santos, bem-aventurados.
Tinham por eles quanta veneração o homem pode ter pela divindade que ama ou teme. Para o seu pensamento cada morto era um deus. Esta espécie de apoteose não era somente apanágio dos grandes homens; entre os mortos não havia distinção de pessoa. Cícero diz-nos:
  • ‘Os nossos antepassados quiseram que os homens que tivessem deixado esta vida fossem contados no número dos deuses’.
Não era mesmo necessário ter sido homem virtuoso: tanto era deus o mau como o homem de bem; somente o mau continuaria na sua segunda existência com todas as suas más inclinações já reveladas durante a sua primeira vida.
Os gregos davam de bom grado aos mortos o nome de deuses subterrâneos. Em Ésquilo, o filho invoca seu falecido pai por estas palavras: ‘Oh tu que és um deus sob a terra’. Eurípides, falando de Alceste, acrescenta: ‘Junto do teu túmulo o viandante parará e dirá: Aqui vive agora a divindade bem-aventurada’. Os romanos davam aos mortos o nome de deuses manes. ‘Prestai aos deuses manes quanto lhes é devido, diz Cícero, são homens que abandonaram esta vida terrena; considerai-os como seres divinos’.
Os túmulos eram os templos destas divindades. Por isso tinham a inscrição sacramental “Dis Maníbus”. O deus vivia enterrado no seu túmulo, “Manesque sepulti”, no dizer de Virgílio. Diante do túmulo havia um altar para os sacrifícios igual ao que há em frente dos templos dos deuses.
Achamos este culto dos mortos entre os helenos, os latinos, os sabinos e entre os etruscos; encontramo-lo também entre os árias da Índia. Os hinos do Rig-Veda referem-se-lhe. O livro das leis de Manu fala deste culto para no-lo apresentar como o mais antigo culto professado pelos homens. Viu-se já neste livro como a ideia da metempsicose passou por cima desta velha crença; e, apesar de a religião de Brama já anteriormente estar estabelecida, contudo, sob o culto desta religião ou sob a doutrina da metempsicose, subsiste ainda viva e indestrutível a religião das almas dos antepassados, a obrigar o redactor das leis de Manu a tomá-la em consideração e a admitir ainda as suas prescrições no livro sagrado. Não é singularidade menor deste livro tão excêntrico conservar as regras relativas às antiga crenças, sendo evidentemente redigido em época em que já predominam crenças inteiramente opostas. Isto nos prova que, se é preciso muito tempo para as crenças humanas evolucionarem, ainda muito mais tempo se torna necessário para as práticas exteriores e as leis se modificarem. Ainda em nossos dias, depois de tantos séculos passados e de tantas revoluções, os hindus continuam fazendo as suas oferendas aos antepassados. Estas ideias e estes ritos são o que de mais antigo encontramos na raça indo-europeia, sendo também o que ali tiveram de mais persistente.
O culto na Índia era o mesmo que na Grécia e na Itália. O hindu devia oferecer aos manes a refeição chamada “sraddha”. Que o chefe da casa faça o “sraddha” com arroz, leite, raízes e frutos, para conseguir a benevolência dos manes. O hindu acreditava que, quando oferecia o repasto fúnebre, os manes dos antepassados vinham sentar-se junto dele e aqui tomavam o alimento que lhes era oferecido. Acreditava ainda que esta refeição prestava aos mortos grata alegria». In A Cidade Antiga, Fustel de Coulanges, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1981.

Cortesia de LC Editora/JDACT