sábado, 14 de abril de 2012

Cultura. Civilização. António José Saraiva. «A arte medieval e moderna tem duas vertentes: uma simbolista e outra naturalista, realista, figurativa. A arte simbolista não procura a representação de um modelo, mas utiliza as formas sensíveis como expressão de ideias; a arte realista procura, pelo contrário, a reprodução do natural»



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Religião e ética
«A religião está também na base da ética. As regras a que deve obedecer o comportamento humano são, em grande parte, comuns a várias religiões, como o hinduísmo, o bramanismo, o budismo, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. As três religiões monoteístas supõem-se decretadas pelos deuses, isto é, por uma autoridade absoluta e indiscutível e não participante nos partidos que dividem os homens.
O filósofo Kant imaginou um ‘imperativo categórico’ presente na consciência humana, imperativo que constituiria a prova racional da divindade. Por isso as regras de conduta são universais e absolutas, e não relativas às diversas sociedades históricas. A teologia tornou-se, desta maneira, uma parte integrante do conhecimento ocidental, embora revelada pelo próprio Deus, que se manifesta através da palavra sagrada e do imperativo da consciência.

O ‘homo ludens’
Um instinto que está na natureza humana e também na de certos mamíferos é o instinto do divertimento ou da brincadeira ou da festa ou do desporto. O “homem que brinca” designa-se, em latim, por “homo ludens”. A face “lúdica” da cultura abrange diversos e variados domínios cuja característica geral é serem uma finalidade em si mesmos. A finalidade de uma corrida é correr. Há actividades que são lúdicas e que têm uma motivação religiosa, como a escultura sagrada dos Gregos. Os moralistas, os políticos, os sacerdotes, etc., recusam-se a admitir a actividade puramente lúdica, como a “arte pela arte”, e acentuam a motivação utilitária, produtiva, pedagógica, etc.
Já, no tempo dos Gregos, o desporto era justificado como uma preparação para a guerra. Mas o autor de um livro sobre o “homo ludens” quis demonstrar que a própria guerra tem uma parte lúdica, uma parte festiva, que se manifesta nas bandeiras coloridas, nos desfiles, etc. A partida para uma guerra que se vai iniciar é uma festa para os combatentes.
A principal manifestação lúdica é, a arte, inclusivamente a arte religiosa, que movimentou no Egipto escribas, engenheiros e escravos, para construir monumentos que se pretendia que durassem tanto tempo como os mortos, supostamente vivos para a eternidade. Esta arte religiosa perdurou ao longo do tempo nos templos gregos, receptáculos de deuses, concebidos como imagens de super-homens, e nas catedrais medievais, onde Deus está fora como a luz do Sol e que são mostruários de toda a vida urbana. O teatro, tanto na Antiguidade como na Idade Média, teve uma origem religiosa e até mesmo litúrgica. Na Renascença, renasce a pintura figurativa, durante muito tempo proscrita pelas religiões iconoclastas, ao mesmo tempo que se imitam as imagens da Antiguidade. A arte torna-se mais independente em relação ao sagrado , até que no século XIX se venera um equivalente de Deus chamado ‘Natureza’, que a arte reproduz. É depois que se proclama uma doutrina que se chamou a “arte pela arte”, isto é, a arte sem máscara. Picasso é um exemplo patente do “homo ludens” puro.



A arte medieval e moderna tem duas vertentes: uma simbolista e outra naturalista, realista, figurativa. A arte simbolista não procura a representação de um modelo, mas utiliza as formas sensíveis como expressão de ideias; a arte realista procura, pelo contrário, a reprodução do natural. Não falando já dos iconoclastas, a arte medieval, desde o fim da época helenística, deforma e geometriza as figuras humanas e animais na escultura; as agulhas góticas são um desafio à estabilidade do edifício.
Se quisermos um exemplo da arte simbolista, encontramo-lo na Catedral de Chartres. Pelo contrário, a Igreja de São Pedro de Roma, em parte delineada e decorada por Miguel Ângelo, é uma afirmação de força e de poder bem terreno. É mais pagã do que cristã. A escultura de Miguel Ângelo reproduz as formas humanas aperfeiçoadas e noutra escala, de modo que as suas figuras parecem o modelo daquelas formas». In Cultura, António José Saraiva, Difusão Cultural, 1993, ISBN 709-972-154-7.

Cortesia de Difusão Cultural/JDACT