quarta-feira, 18 de abril de 2012

Inês de Castro. António C. Franco: Memória de Inês de Castro. «Diogo Lopes Pacheco fitava pois sem estremecimento o infante e acompanhava-o até em pequenos passeios até à Serra em que ambos dormiam, às vezes, nas ruínas cheias de luar da pequena casa da velha rainha aragonesa ou então em quarto branco e fresco de algum camponês»



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A Guerra
«Foi só no regresso dos procuradores que foram da Atouguia a Santarém que o infante se inteirou dos planos da corte. Habituado a uma liberdade sem outro horizonte do que a luta com a vida selvagem dos montes, o infante tinha repelido Branca mais pelo esquecimento, do que pela paixão. Se para a corte, e sobretudo para o rei, o casamento era uma carta diplomática que convinha saber jogar no momento exacto, o casamento era para o infante um ilícito aborrecimento que era preciso, tanto interior como exteriormente, desfazer. Não há, por isso, no primeiro gesto de desagrado de Pedro para com Branca, qualquer rebeldia consciente e muito menos assumida. Há apenas o desenfado de ter de pensar em assuntos que extravasem o âmbito ilimitado dos seus montados e em particular o da serra da Atouguia, de onde se contemplavam as ilhas. Pedro tinha agora o hábito de passar dias seguidos ao ar livre, correndo toda uma cercadura de pequenas encostas que sobem da Atouguia até Óbidos. Acompanhavam-no rapazes que repetiam sempre a façanha de acompanhar o infante nessas jornadas onde se dessedentavam nus nos pequenos ribeiros dos matos.
Alguns deles temperavam aí, sem disso sequer saberem, uma amizade e uma camaradagem que os havia de empurrar, em situações futuras, para uma fidelidade ao infante, que os levaria depois à morte e à desonra. Mas, mesmo aí, haviam de o servir com o coração nas mãos e as lágrimas nos olhos.
A Primavera e o Verão desse ano foram passados em correrias pelas margens da Lagoa de Óbidos e por incursões aos cercados da Serra do Bouro. Diogo Lopes Pacheco continuava a ser, aos trinta anos, o elo de ligação entre Santarém, onde o rei e a rainha estavam frequentemente, e Atouguia, onde o infante se parecia ter enraízado. Eram relações de cortesia e até de vassalagem, se entendermos este termo em sentido amplo, mas eram relações isentas de qualquer sombra porque o lugar dos infantes era, nesse tempo, um lugar desassombrado e corajoso. Diogo Lopes Pacheco fitava pois sem estremecimento o infante e acompanhava-o até em pequenos passeios até à Serra em que ambos dormiam, às vezes, nas ruínas cheias de luar da pequena casa da velha rainha aragonesa ou então em quarto branco e fresco de algum camponês. Mas o lugar dos príncipes é também nessa idade um lugar solitário. O coração começa-lhes a pesar entre a liberdade e a obrigação, sem que eles entendam a razão de ser da segunda. Medem a obrigação do casamento com um misto de revolta e de incompreensão, e querem-se livres e adolescentes para toda a vida. O amor não só ainda não os visitou como provavelmente nunca os visitará. A Idade Média podia ser já encarada como uma degradação do tempo, era-se rei sem se ser tocado pelo mistério.
Novembro ainda vinha longe, mas os primeiros dias de Outubro trouxeram dias fechados e com uma aparência já minguada. Os camponeses recolhiam-se depressa elevavam o capelo já enfiado na cabeça, quando à tarde regressavam dos campos. Aproveitavam as manhãs mais limpas para percorrerem a costa e armarem, nas rochas onde se escondiam os polvos, pequenas armadilhas. Foi por essa altura que uma perturbação interior, em grande parte inexplicável, tomou o infante. Não havia aparentemente nenhuma razão para esse afastamento, que era mais um recolhimento nos paços de Atouguia. Deixou-se ficar em casa um número de dias seguidos e decidiu depois ir passear até Alpiarça onde, nos primeiros dias da guerra civil entre o seu pai e o seu avô, pôs a boca no peito das mulheres do povo. Sentiu-se nesse momento preso a essa extensa planície, onde passavam manadas de touros e onde os homens guardavam hábitos não tão ancestrais, que não fosse possível referenciá-los à presença, ainda recente, dos árabes na região. Os homens picavam aí os touros e passeavam sempre sentados nas selas dos seus cavalos, as mãos no arção, já que, numa terra que se estendia até ao horizonte, quem andasse a pé se perdia. Essa planície restituiu-lhe a alma e houve dezenas de montadores, quase irmãos de peito, que o quiseram acompanhar a Atouguia. Levaram com eles touros e cavalos e a sua chegada à Atouguia foi estridente. O infante quis que eles se fixassem na região e deu-lhes, para isso, terras e ocupações. Foi marcado um enorme terreiro à entrada da vila, do lado dos campos, onde se plantariam as estacas de pedra do touril». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990.

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