Prólogo
«A Bela Adormecida Vai à Escola
é uma narrativa escrita durante os anos cinquenta e cinquenta e um. Permaneceu inédita
durante todo este tempo. E sem a minha intervenção, quer dizer, sem o ter
pedido, um editor actual, considerou que valia a pena publicá-la. Aqui está.
Mas a mim pareceu-me razoável acompanhá-la de um prólogo, não apenas pelo meu
apego, que confesso, a esse subgénero, mas também porque neste caso são
realmente indispensáveis algumas palavras prévias. No melhor dos casos,
bastariam duas ou três páginas. É verdade. Três páginas seriam suficientes. Mas
eu, quando estou sentado diante da máquina de escrever, perco o sentido da
medida e não conto o papel que entra e sai do rolo, que entra impoluto e sai
manchado pelas letras.
E consequência da minha desordem incurável: se por um lado nunca trago
bem pensado aquilo que vou escrever, confiando no acaso e nas boas ideias, por
outro lado também não estou muito certo de que me convenha ser breve, embora também
não o esteja de que uma razoável extensão seja mais oportuna. Com estas dúvidas
não se pode chegar a parte nenhuma, pelo menos airosamente, como a barca que
atinge a meta ou a gaivota que poisa na crista espumejante, mas com estas
dúvidas ponho-me a escrever este prólogo. Dúvidas, incerteza... A única coisa
de que estou convencido é da necessidade de escrever alguma coisa, longa ou
curta, mas explícita e, se possível, convincente, acerca deste romance, da razão
por que o mantive inédito durante trinta anos, e por que autorizo agora a sua
publicação. E também sobre algumas coisas mais que possam surgir, relacionadas
com o romance ou alheias a ele. Porque ignoramos sempre aquilo que vai
acontecer durante um processo de invenção, como também não suspeitamos o que
ocorre depois de algum processo de leitura.
Além disso, numa passagem deste romance fala-se de um professor capaz
de escrever um ensaio acerca de um tema inexistente, e dá-se a circunstância de
que, neste momento, estou em transe e na disposição de fazer o mesmo. A
Bela Adormecida Vai à Escola, de certo modo, não existe, e pode mesmo
considerar-se irreal. Esfrego as mãos de satisfação perante a ideia de que já
estou apanhado.
O meu espírito é de tal maneira rápido que por vezes não consigo
alcançá-lo. Pois é a essa sua rapidez, a essa sua inclinação para se adiantar
aos tempos e inquirir o futuro, ainda que apenas o meu, que devo a informação
indispensável para saber com a devida antecedência que um dia haveria de ser
considerado narrador antiquado, e então, perante tal evidência, pensei: E se hei-de sê-lo nesse dia, por que não
começar já? E comecei a procurá-lo. Convém além disso acrescentar o meu
escasso entusiasmo pelas propostas estéticas que me foram feitas ao longo desse
meio século, e o empenho com que me pus a procurar um caminho próprio: neles permaneço, no caminho e no empenho.
Atrevo-me a dizer que este romance da Adormecida é, o mais antiquado e o mais divergente, embora ainda o
não fosse, nem estivesse para sê-lo, quando foi escrito.
[…]
É ainda prematuro responder, pois que convém dar alguns esclarecimentos,
talvez históricos. Naquele tempo falava-se muito de literatura comprometida, é até possível que não se falasse de outra
coisa, e, salvo aquilo que a esse respeito disse o inventor da designação, que
foi um espírito clarividente, não foi ela tratada com suficiente acerto, e cada
qual puxava à sua sardinha, quero dizer aos seus interesses ou às suas limitações,
a brasa do compromisso, palavra
que serviu, em muitos casos. como bilhete de identidade ou como arma de
arremesso, ou antes como tijolo. Ainda um dia se há-de escrever essa história
que, penso eu, vai coincidir inevitavelmente com a dos Sete Anões, embora com mais anões. No capítulo que nos cabe,
convirá esclarecer que, entre nós, comprometer-se
significou imitar Camus e Sartre, coisa que, por outro lado, se
fez bastante mal». In Gonzalo Torrente Ballester, A Bela Adormecida Vai à Escola, 1983,
Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1052-7.
Cortesia de Caminho/JDACT