Prefácio
Alguém que não seja eu, um lugar que não seja este
«Todos sabemos como a história começa: naquele lugar de La
Mancha, cujo nome nunca viremos a conhecer, vivia um fidalgo pobre
chamado Alonso Quijano que, um dia, em consequência do muito ler e do muito
imaginar, passou do juízo à loucura, tão naturalmente como quem abre e fecha
uma porta. Assim o quis Cervantes,
decerto porque a mentalidade do seu tempo repugnaria aceitar que um homem, na
posse plena das suas faculdades mentais, e ainda que apenas personagem de
romance, decidisse, por um simples acto de vontade, deixar de ser quem tinha
sido para mudar-se em outro: graças à
loucura (alienação / alheação), a rejeitação das regras do jogo racional
torna-se pacífica, na medida em que irá permitir ignorar qualquer aproximação
que não proceda segundo as vias redutoras que têm por objectivo a cura. Do
ponto de vista dos contemporâneos de Cervantes e das personagens do romance, Quijote é louco porque Quijano enlouqueceu, não sendo
sequer enunciada ou insinuada a hipótese de ser Quijote, tão somente ou, pelo contrário, de modo supremo, o outro de Quijano. Contudo, Cervantes tem uma visão muito precisa da
irredutibilidade das consequências da mudança
de Quijano, quando reforma e
reorganiza, de alto a baixo, o mundo que vai receber essa identidade nova que é
Quijote, mudando os nomes e as
qualidades de todas as coisas: a estalagem é castelo, os moinhos são gigantes,
os rebanhos exércitos, Aldonza transforma-se em Dulcineia, para não
falar do mísero cavalo promovido a Rocinante e de uma bacia de barbeiro
alçada à dignidade de elmo de Mambrino. Já Sancho, tendo embora de viver
as aventuras e imaginações Quijote,
não precisa enlouquecer nem mudar de nome: até mesmo quando o proclamarem governador
de Barataria, continuará a ser, no físico e no moral, mas sobretudo na
sólida identidade que o define, Sancho Panza. Nada mais, mas também nada
menos.
Sabemos, igualmente, de Fernando
Pessoa e dos seus heterónimos. É certo que Pessoa não precisou enlouquecer para tornar-se outros, mas é
interessante, no entanto, verificar como ele, para dar do seu caso uma
explicação que não relevasse da mera vontade de ser outro ou, mais
complexamente, da necessidade de não ser quem é, se diagnostica a si mesmo como
histero-neurasténico, desta maneira passando, com perturbador à-vontade, das
auras poéticas para o foro clínico. Justifica, assim, os seus heterónimos,
atribuindo-os à sua tendência orgânica e constante para a despersonalização
e para a simulação. Falar de despersonalização
não parece contudo muito rigoroso, quando somos testemunhas, não de uma
despersonalização, situação em que o poeta, tendo deixado de ser quem era, se limitasse
a interrogar-se sobre quem poderia ter sido, mas a uma pluripersonalização
sucessiva, em que o poeta, no instante mesmo em que deixou de ser ele próprio,
assiste à imediata ocupação do vazio por uma nova entidade poética, tornando
portanto a ser alguém na medida em
que pôde tornar-se outro. É interessante,
repito, observar como Pessoa nos
quer fazer crer na origem orgânica
dos seus heterónimos, aliás em contradição flagrante e total com a descrição
que faz do nascimento deles, que mais parece corresponder a uma sequência de
lances de um jogo dentro doutro jogo:
- lembrei-me um dia de inventar um poeta bucólico, aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir uns discípulos, arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo, Álvaro de Campos...
É de supor que o aparecimento dos outros heterónimos ou
semi-heterónimos, como fossem António Mora, Vicente Guedes ou Bernardo
Soares, tenha percorrido caminhos mentais similares e modos de elaboração e
definição paralelos. Que nos diz Cervantes da vida de Alonso
Quijano antes que a loucura tivesse transformado o mal favorecido homem,
que o foi tanto de fortuna como de figura, naquele ardoroso e infatigável
cavaleiro a quem as derrotas nunca diminuíram o ânimo, antes pareceu encontrar
nelas o alento para o combate seguinte, infinitamente perdido e infinitamente
recomeçado? Cervantes, dessa vida
enigmática, nada nos diz. E, contudo, Alonso Quijano frisava já os
cinquenta anos de idade quando Cervantes
o plantou inteiro na primeira página do Quijote.
Mesmo num pueblo perdido de La
Mancha, tão perdido que nem o seu nome se achou, um homem de cinquenta
anos por força teve uma vida, acidentes, encontros, sentimentos vários. Seus
pais, quem foram? De que irmão ou irmã lhe veio a sobrinha? Não teria Alonso
Quijano tido filhos, um varão, por exemplo, que por não ter nascido à
sombra do santo sacramento do matrimónio foi deixado ao Deus-dará? E a mãe
desse filho, quem terá sido? Uma moça da aldeia, barregã por uns tempos, ou
apenas tomada de ocasião em tarde de calor, no meio da seara ou atrás dum
valado?» In Gonzalo Torrente Ballester, Ediciones Destino, Barcelona, 1972, A
Saga / Fuga de J. B., Prémios Cidade de Barcelona e da Crítica em 1972, Prefácio
de José Saramago, 1991, Publicações Dom Quixote, Letras de Espanha, Lisboa,
1992, ISBN 972-20-1016-6.
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