Em busca do conceito de História
«(…) Tenho um imenso respeito pelos imensos chefes mas, parodiando Bertolt
Brecht, Nuno Álvares combateria só em Aljubarrota? Ninguém o ajudou a
coser a sua rota vanguarda? Foi ele
quem abriu as covas do lobo?
4. Depois narrar como e para quê? Contar divertindo, contar
empolgando, contar ensinando, contar enganando, contar sempre intervindo,
contar prevendo, contar penetrando, compreendendo? Mas contar não
constitui já a segunda fase deste
inquérito? Para contar não é preciso primeiro
investigar? Por outro lado, esta língua moldada pelo quotidiano, pela literatura,
será o veículo mais adequado para exprimir, responder às tais res gestae?
5. Falou-se atrás em
protagonista, em herói. Mas acaso os seus actos foram planeados, organizados e
executados com plena independência com a estrita concordância ideia-
-acontecimento? Se depois de
contada esta história exemplar, a lição que possa retirar-se for a de
que se trata de história, isto é, de inquérito sobre a acção espontânea ou
organizada, clara ou absurda, mas progressivamente consciente das dependências
na superação de determinações e dependências, concluiria eu que esta
narração-compreensão batera certo. No rol das dependências podemos assentar território,
clima, pedra, vegetal, animal, ferramenta, simples ou compósita, teias e teias
de laços biológicos, económicos, sociais, linguísticos, culturais, mentais.
6. Agora noutra direcção,
questão de termos e não só: História de
Portugal ou História do Povo
Português? Dizer Portugal não é afinal prender as gentes no território, apoucar
as gentes, o agente? Nesta História,
o nome Portugal é recente. Mas por mim creio que a Portugal cabem melhor os
laços e complexos do passado mais remoto quando a nação e, portanto, o povo
português se não constituíra ainda; Portugal expressa mais justamente a
interdependência natureza-sociedade. E se no ponto de vista da História, que é
o nosso, a ofensiva cabe aos grupos humanos; se são eles que arrancam à
natureza o alimento e o afeiçoam, também são eles que adubam a terra até ao
extremo limite da sua carne e dos seus ossos. Mas desde que se salvaguardem as
dependências, não nos prenderemos com palavras: Portugal, Povo Português.
Aliás os termos Portugal ou Povo transitam entre nós com conteúdos
ambíguos. Por exemplo e no centro, rejeito no termo Portugal a entidade mítica,
impenetrável à razão, arquétipo platónico só hino e bandeira,
conciliador de exploradores e explorados ou, se quiserem, abafador ou apagador
desta contradição, espírito pairando, argamassando, unindo as classes, cabendo
aos explorados a entrega irracional, o sacrifício. Numa sociedade de classes,
tal ideia de nação vogando acima como o espírito de Deus sobre as águas,
entroniza, reveste de sagrado a dominação dos grupos privilegiados. A nação
surgiria assim como um EU colossal, oposto a outros eus, transferindo para as relações
entre Estados as relações dominador-dominado, existentes, mas negadas no
interior de cada um deles. E isto tanto mais fortemente quanto mais sufocante a
exploração interna de classe. É um modo de extrapolar, de compensar, através da
exploração alheia, a incómoda exploração interna que a repressão e a expansão
externa calam na própria consciência.
7. Por outro lado, os homens
de hoje não são os afonsinos nem os joaninos, os filipinos ou bragancinos,
mesmo os republicanos da I República. A designação afonsino, joanino,
etc., parece mas não pretende privilegiar a periodização dinástica, embora
estes cortes dinásticos
revelem alterações profundas
na estrutura política e que correspondem a outras transformações na ordem
económico-social. A periodização, para lá de método de apreensão da realidade
mutável e complexa, corresponde a algo real na
história real? A periodização levanta o problema de saber se no processo histórico
ocorreram e ocorrem saltos, alterações qualitativas, prosseguimentos da acção
noutro plano. A aceitar tais cortes, quais deles privilegiar: os que se assinalam ao nível das forças
produtivas, na sociedade, nas instituições políticas?» In António Borges Coelho,
Questionar a História, Ensaios sobre História de Portugal, colecção
Universitária, Editorial Caminho, Lisboa, 1983.
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