quarta-feira, 8 de maio de 2013

Questionar a História. Ensaios sobre História de Portugal. António Borges Coelho. «… os homens de hoje não são os afonsinos nem os joaninos, os filipinos ou bragancinos, mesmo os republicanos da I República. A designação afonsino, joanino, etc., parece (…) embora estes ‘cortes’ dinásticos revelem ‘alterações’ profundas na estrutura política…»

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Em busca do conceito de História
«(…) Tenho um imenso respeito pelos imensos chefes mas, parodiando Bertolt Brecht, Nuno Álvares combateria só em Aljubarrota? Ninguém o ajudou a coser a sua rota vanguarda? Foi ele quem abriu as covas do lobo?
4. Depois narrar como e para quê? Contar divertindo, contar empolgando, contar ensinando, contar enganando, contar sempre intervindo, contar prevendo, contar penetrando, compreendendo? Mas contar não constitui já a segunda fase deste inquérito? Para contar não é preciso primeiro investigar? Por outro lado, esta língua moldada pelo quotidiano, pela literatura, será o veículo mais adequado para exprimir, responder às tais res gestae?
5. Falou-se atrás em protagonista, em herói. Mas acaso os seus actos foram planeados, organizados e executados com plena independência com a estrita concordância ideia-
-acontecimento? Se depois de contada esta história exemplar, a lição que possa retirar-se for a de que se trata de história, isto é, de inquérito sobre a acção espontânea ou organizada, clara ou absurda, mas progressivamente consciente das dependências na superação de determinações e dependências, concluiria eu que esta narração-compreensão batera certo. No rol das dependências podemos assentar território, clima, pedra, vegetal, animal, ferramenta, simples ou compósita, teias e teias de laços biológicos, económicos, sociais, linguísticos, culturais, mentais.
6. Agora noutra direcção, questão de termos e não só: História de Portugal ou História do Povo Português? Dizer Portugal não é afinal prender as gentes no território, apoucar as gentes, o agente? Nesta História, o nome Portugal é recente. Mas por mim creio que a Portugal cabem melhor os laços e complexos do passado mais remoto quando a nação e, portanto, o povo português se não constituíra ainda; Portugal expressa mais justamente a interdependência natureza-sociedade. E se no ponto de vista da História, que é o nosso, a ofensiva cabe aos grupos humanos; se são eles que arrancam à natureza o alimento e o afeiçoam, também são eles que adubam a terra até ao extremo limite da sua carne e dos seus ossos. Mas desde que se salvaguardem as dependências, não nos prenderemos com palavras: Portugal, Povo Português.
Aliás os termos Portugal ou Povo transitam entre nós com conteúdos ambíguos. Por exemplo e no centro, rejeito no termo Portugal a entidade mítica, impenetrável à razão, arquétipo platónico só hino e bandeira, conciliador de exploradores e explorados ou, se quiserem, abafador ou apagador desta contradição, espírito pairando, argamassando, unindo as classes, cabendo aos explorados a entrega irracional, o sacrifício. Numa sociedade de classes, tal ideia de nação vogando acima como o espírito de Deus sobre as águas, entroniza, reveste de sagrado a dominação dos grupos privilegiados. A nação surgiria assim como um EU colossal, oposto a outros eus, transferindo para as relações entre Estados as relações dominador-dominado, existentes, mas negadas no interior de cada um deles. E isto tanto mais fortemente quanto mais sufocante a exploração interna de classe. É um modo de extrapolar, de compensar, através da exploração alheia, a incómoda exploração interna que a repressão e a expansão externa calam na própria consciência.
7. Por outro lado, os homens de hoje não são os afonsinos nem os joaninos, os filipinos ou bragancinos, mesmo os republicanos da I República. A designação afonsino, joanino, etc., parece mas não pretende privilegiar a periodização dinástica, embora estes cortes dinásticos revelem alterações profundas na estrutura política e que correspondem a outras transformações na ordem económico-social. A periodização, para lá de método de apreensão da realidade mutável e complexa, corresponde a algo real na história real? A periodização levanta o problema de saber se no processo histórico ocorreram e ocorrem saltos, alterações qualitativas, prosseguimentos da acção noutro plano. A aceitar tais cortes, quais deles privilegiar: os que se assinalam ao nível das forças produtivas, na sociedade, nas instituições políticas?» In António Borges Coelho, Questionar a História, Ensaios sobre História de Portugal, colecção Universitária, Editorial Caminho, Lisboa, 1983.

Cortesia de Caminho/JDACT