Polícia
«(…) Annemarie tinha o dom da poesia subversiva. Subvertia tudo.
A seu lado senti que a minha vida era importante. Que a arriscaria, sempre e
sempre, que perderia, mas nada cedendo de mim próprio. O amor do perigo
embebedava-me. Começámos então a lutar contra a polícia do mundo inteiro.
Quando anoiteceu saímos do bar e fomos a pé, vigilantes, protegidos, até ao meu
quarto de Laeken. Contornámos o que nos parecia suspeito: um carro parado, um
vulto vagaroso, as sombras, as vozes. Foi ainda preciso subir furtivamente as
escadas do prédio, pois a senhoria já me mandara embora, porque 1.º eu não lhe
pagava a renda, porque 2.º não queria complicações com a polícia. Mas depois o
quarto foi nosso. Annemarie despiu-se e deitou-se nua sobre o cobertor enquanto
eu tentava aquecer um pouco de água. Falámos longamente da chuva, do amor e das
leis. Às duas da manhã fomos à janela e vimos passar dois guardas na rua. Pareceu-me
que observavam a nossa janela. Cumplicidade e ardor, a partilha da
vulnerabilidade mútua, a coragem de tudo enfrentar com tão pouco: essas eram as
nossas armas. E dispúnhamos dos melhores talentos da libertinagem. Annemarie
puxou-me para dentro e amámo-nos sobre o cobertor até de manhã, até a luz fria
nos afogar. Choveu sempre. Sentíamos a chuva sobre a terra inteira. Éramos
invencíveis. Seja dito que vós, os desta nação, ignorais muitas coisas. Talvez Deus
vos não inspire.
O Grito
Imaginem que sou um empregado de escritório, um pequeno burguês
calafetado cuja existência foi de súbito invadida pela peste. Volto sempre ao
mesmo. Esta ideia da peste não me sai da cabeça. Podem supor o que era a minha
vida. O trabalho, as noites no café ou no cinema, um livro, a visita a um
prostíbulo. Vida sem imaginação, não é?
Pois bem, estive preso durante um mês. Não é muito. Agora parece-me que já não
poderei ter qualquer espécie de esperança. Sento-me neste bar e embebedo-me.
Preciso estar bêbado. Vejo os vestidos vermelhos e azuis das raparigas
escoando-se por entre as mesas. Toca-se uma música lancinante. Gosto deste bar.
Atordoa-me. O espelho mostra-me um olhar aflito. Levanto o copo com a mão
hesitante, e saúdo-me. Noto perfeitamente a minha mediocridade. Uma bebedeira
dolorosa, um pouco repugnante, não? -
Pagas-me uma bebida? - Um vestido
encarnado sobe pelo meu lado esquerdo. É bem suja esta vidinha, meus amigos.
- Claro que pago, digo eu. - Vou
dormir e não acordo mais. O inspector da polícia olha-me com cordialidade.
Estes tipos são bestialmente cordiais. - Nada receie, meu caro - diz. - Nós
tratamos bem as pessoas. Fuma? Recuso
o cigarro. Ele está por trás da secretária, curva-se para mim sobre o
mata-borrão. Insinuante. - Somos todos seres humanos, não é? Essas histórias de tratamentos brutais aos presos são pura
lenda. Coisas da propaganda comunista. Há nos seus olhos uma malícia
inteligente. Pode parecer um homem culto, um intelectual. Na mesa ao lado o
dactilógrafo regista as perguntas essenciais e as minhas respostas. Um agente
está encostado à janela. Folheia uma revista. Nada receio, afirmo eu. - Nunca
tive actividade política. Sequer convicções. É um equívoco. O vestido vermelho
ri. – Já estás bêbado, velhinho. - Não chateie. Beba o chá, e bico. Vou morrer.
Preciso morrer.
Ri sempre, e o dactilógrafo escreve. Reparo num mapa do país, encerado,
pendendo ao lado direito da porta. Tem bandeirinhas de várias cores. - Creio
nisso. - De onde vem esta voz generosa?
- O senhor não tem aquele ar… Como direi?...
Penso que a temperatura é muito alta. Porque não fecham o aquecimento? Em contrapartida faz bastante frio na cela. É toda
de pedra, e estamos no inverno. - Aquele ar febril… aaa… acossado... aaa... dos
verdadeiros criminosos. - Como? -
Falo dos comunistas. Mas existem culpados com muito sangue-frio. Claro, eu sei
que o senhor não é comunista. De repente lembro-me que sou empregado de
escritório. - Sou empregado de escritório - digo baixinho. - Nem sei o que seja
comunismo, não sei bem o que seja. - Sorrio um pouco, no fundo de uma pequena
alegria humilhada. - Sou um homem comum. - Ele faz um gesto penetrante, um
tanto ambíguo. Sorri inteligentemente.
- Os
comunistas são empregados de escritório. Como está quente! Penso. São isto e
aquilo. E poucos na realidade conhecem o comunismo. Conhecem a propaganda. A música
gira cada vez mais depressa. Que coisa boa, a música louca. Olho de novo a minha
cabeça no espelho. Parece que estou só no bar, horrivelmente só no meio de
tanto barulho. Uma cabeça empesada, branca ou negra, fria como o terror. -
Acredite que não sabem. São simples revoltados. Homens amargos que procuram uma
fuga na revolta. Não são capazes de integração positiva na sociedade onde
vivem. Querem destruir. Encontram uma saída na marginalidade do comunismo». In
Herberto Helder, Os Passos em Volta, Assírio & Alvim, 2009, ISBN
978-972-37-0119-7.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT