Repercussão de Alcácer Quibir
As Primeiras Notícias de Alcácer Quibir
«(…) As mulheres corriam em lágrimas para as igrejas. Dir-se-ia não haver
pessoa que não tivesse em África, metidos naquela estúpida aventura, um filho,
um pai, um esposo, um parente amado ou um amigo querido. A dor confundia-se com
a indignação e havia quem amaldiçoasse aquele rei Sebastião, que aliás nunca
fora popular, por ter passado todo o seu reinado a cometer imprudências, a
última das quais fora a de atirar-se para aquele servedouro de Alcácer Quibir,
que ameaçava absorver a independência do reino. Só a 18 ou possivelmente a 19 de
Agosto, chegou Salvador Medeiros, criado do cardeal, que entrara
na batalha por um capricho do acaso e escapara da morte e do cativeiro por
outro capricho da sorte. O cardeal Henrique tinha-o mandado a Arzila
cumprimentar o sobrinho. Desembarcara naquela praça, já depois do rei Sebastião
ter abalado com o exército em busca do Maluco;
mas, em contrapartida, encontrara Afonso Correia, que vinha de Almenara,
onde o conselho dos capitães resolvera retroceder, se acaso a esquadra ainda não
tivesse largado de Arzila para Larache, como o monarca lhe ordenara.
Por infelicidade dos portugueses, os navios já tinham partido e o
avanço tinha de prosseguir. Então, Medeiros, seguindo na companhia de Afonso
Correia, foi juntar-se ao exército, entrara na batalha, assistira ao
desastre e, apenas ligeiramente ferido, conseguira voltar a Arzila, com um
reduzido rancho de fronteiros de Tânger, e reembarcar de volta a Portugal na
mesma caravela que o levara à África. As suas informações de testemunha ocular
só puderam confirmar o desbarato completo da expedição; nada adiantaram, porém,
acerca do soberano. Estaria vivo e
prisioneiro ou morto?
Era aflitiva a falta de notícias, não só acerca do monarca Sebastião,
mas também dos milhares de combatentes. Dir-se-ia que o exército se sumira
bruscamente num pântano. Resolveu o cardeal Henrique enviar cartas ao duque de
Bragança, ao conde de Tentúgal e a outros fidalgos ausentes de Lisboa,
chamando-os urgentemente à corte. E como se ignorava o paradeiro de Sebastião,
encarregou Simão Gonçalves Preto, chanceler-mor, e os desembargadores do
Paço, Gaspar Figueiredo, Jerónimo Pereira Sá, Manuel Quadros,
Paulo Afonso e Pedro Barbosa de estudarem o problema da sucessão,
de harmonia com o Direito. E foram eles de parecer que nem o sacerdócio, nem o capelo
impediam o cardeal de suceder no trono. Mas, na incerteza de Sebastião
ter falecido, devia o cardeal Henrique ser proclamado curador, governador e
herdeiro do ceptro, como parente mais próximo do monarca. Acrescia ainda que,
extinto o ramo do primeiro filho do rei Manuel I, a herança tinha de recair logicamente
no único filho vivo do Venturoso.
Leu-se este parecer, assinado por todos, na cerimónia da proclamação, celebrada
a 22
do mesmo mês, no palácio dos duques de Bragança, onde o cardeal pousava, perante
os principais fidalgos que se encontravam em Lisboa, alguns prelados, membros
dos altos tribunais e vereadores da Câmara. Conta o cronista, frei Manuel
Santos, que o cardeal Henrique, pronunciando um discurso, entre lágrimas,
rematou deste modo:
- Mas já que Deus deu este tão grande açoite por pecados nossos, parece que a mim coube a maior parte dele, tanto pela dor que sinto de meu sobrinho, que de força deve ser morto, ou cativo, como por me eu agora sacrificar em tomar o peso do amparo do Reino, posto em estado de tão grandes trabalhos, e eu já debilitado, sem forças, não me ficando mais tempo, que para tratar da morte, a que já me vedes tão vizinho.
In Mário Domingues, O Cardeal D. Henrique, o Homem e o Monarca,
Evocação Histórica, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1964.
Cortesia de L. R. Torres/JDACT