Prólogo
«(…) Pois bem! A Bela Adormecida Vai à Escola foi
concebida, pensada e realizada como sátira contra todas as coisas cognoscíveis,
como sátira geral e irremediável, não por alguém que já não acreditava em nada,
mas por um homem que ainda tinha fé, embora já problemática, e a quem essa fé
ajudava a ver claro, a prescindir de compromissos e de convenções, a proclamar
claramente que, fora de algumas pessoas simples e de alguns sentimentos também
simples, tudo o resto era um nojo. Não creio que exagerasse ao pensá-lo, e
menos ainda ao indignar-me, mas consegui compreender, ou descobrir, que bastantes
dessas coisas, dessas pessoas, dessas situações e desses sentimentos que eu
considerava corruptos e que portanto convinha denunciar, eram convencionalmente
intocáveis mesmo para aqueles que a si próprios se intitulavam comprometidos: saíamos de uma convenção
para entrar noutra, e isso era aceite. E por nada de mau, mas porque é
inconcebível uma época, uma sociedade, um mundo em que isso não aconteça. A
atitude satírica é em si mesma louvável, mas o satírico deve escolher com muito
tino o alvo dos seus sarcasmos.
Uma parte do programa assinala claramente quem é que deve ser posto no
pelourinho, e até como, porque os que
governam o mundo conhecem essa necessidade moral, talvez compensatória, de pôr
alguma coisa no pelourinho. O satírico, por vezes sem o saber, colabora
com a ordem estabelecida do mesmo modo que o cirurgião. Mas se sai do programa,
ai dele! A este respeito, quero contar uma das minhas experiências da sociedade
norte-americana. A primeira coisa que surpreende quem ali chega é a liberdade com que se criticam as
palavras e os actos dos homens públicos, dos governantes, dos sacerdotes, de
todos aqueles que, de um ou de outro modo, dirigem ou governam. O logo
está tão bem montado que chega a ser convincente, e pensamos que,
provavelmente, até as excelentes piadas inventadas pelos judeus se incluem na
economia (e na relojoaria) do albergue.
[…]
A mim parece-me que, quando escrevi A Bela Adormecida Vai à Escola,
sátira contra tudo, me tinha colocado também fora, estava off-side, e por isso ninguém a aprovou, nem mesmo os defensores da
arte comprometida. Não preciso de esclarecer que a escrevi com entusiasmo e
convencido de que estava a gerar uma obra-prima: isto acontece a
todos os artistas cuja juventude carece da experiência necessária para
compreender os limites e as relatividades, e eu era então um desses
artistas, embora não só a minha experiência fosse imperfeita como também a minha
habilidade artística deixava um pouco a desejar. Situo o processo de redacção,
se a memória não me falha, nos anos cinquenta e cinquenta e um, depois de Ifigénia e antes da decisão que tomei de
abandonar a literatura, decisão precipitada e absolutamente fanática, mas justificada,
que aconteceu mais ou menos em mil novecentos e cinquenta e três, e da qual
saiu, paradoxalmente, O Senhor Chega. Esses dois ou três
anos intermédios dediquei-os, entre outras coisas, ao estudo da arte do romance,
não porque pensasse servir-me dela como autor, mas porque me fazia falta para o
meu ofício de crítico.
A Adormecida é, portanto, anterior a esse período, e está escrita
com o saber técnico que tinha retirado, talvez inconscientemente, pelo menos
sem vontade, das minhas leituras. É certo que tinha lido muito, mas não tinha
dado atenção suficiente a determinadas questões, problemas e maneiras, ou não
lhes clava importância. Daí, por exemplo, essa constante presença, arcaica e
agora, para rnim, tão divertida, do
narrador na narrativa. Houve um tempo, contudo, em que lhe atribuí mais
importância do que ela tem, assim como ao facto de a Adormecida ser uma narrativa
linear. Agora já sei que romper a
linearidade por princípio ou por preconceito é o mesmo que rompê-la por capricho
ou por não ter nada melhor para fazer: os modos narrativos de que dispomos, que
são os mesmos de sempre, três ou quatro, não há que ter ilusões, quando se usam
porque está na moda este ou aquele, é a melhor maneira de nos enganarmos. Cada
matéria exige o seu tratamento; a sua inserção no tempo e nos sistemas é
imposta pela natureza daquilo que temos para contar, o problema está em
descobrir o modo adequado. Agora creio que a linearidade da Adormecida
não ê um defeito, mas o processo natural de contá-la.
[…]
A Adormecida, no entanto, não foi pensada como romance de personagens, entendendo a expressão ao
modo realista, social e psicológico, mas de silhuetas
mais ou menos carregadas de significação. Com este desfile tentei também causar
uma impressão de barulho, de confusão, de disparate, mas, em qualquer caso, dura
demasiado tempo…» In Gonzalo Torrente Ballester, A Bela Adormecida Vai à Escola, 1983,
Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1052-7.
Cortesia de Caminho/JDACT