quinta-feira, 23 de maio de 2013

A Bela Adormecida Vai à Escola. Gonzalo Ballester. «… não foi pensada como romance de ‘personagens’, entendendo a expressão ao modo realista, social e psicológico, mas de ‘silhuetas’ mais ou menos carregadas de significação. Com este desfile tentei também causar uma impressão de barulho, de confusão…»

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Prólogo
«(…) Pois bem! A Bela Adormecida Vai à Escola foi concebida, pensada e realizada como sátira contra todas as coisas cognoscíveis, como sátira geral e irremediável, não por alguém que já não acreditava em nada, mas por um homem que ainda tinha fé, embora já problemática, e a quem essa fé ajudava a ver claro, a prescindir de compromissos e de convenções, a proclamar claramente que, fora de algumas pessoas simples e de alguns sentimentos também simples, tudo o resto era um nojo. Não creio que exagerasse ao pensá-lo, e menos ainda ao indignar-me, mas consegui compreender, ou descobrir, que bastantes dessas coisas, dessas pessoas, dessas situações e desses sentimentos que eu considerava corruptos e que portanto convinha denunciar, eram convencionalmente intocáveis mesmo para aqueles que a si próprios se intitulavam comprometidos: saíamos de uma convenção para entrar noutra, e isso era aceite. E por nada de mau, mas porque é inconcebível uma época, uma sociedade, um mundo em que isso não aconteça. A atitude satírica é em si mesma louvável, mas o satírico deve escolher com muito tino o alvo dos seus sarcasmos.
Uma parte do programa assinala claramente quem é que deve ser posto no pelourinho, e até como, porque os que governam o mundo conhecem essa necessidade moral, talvez compensatória, de pôr alguma coisa no pelourinho. O satírico, por vezes sem o saber, colabora com a ordem estabelecida do mesmo modo que o cirurgião. Mas se sai do programa, ai dele! A este respeito, quero contar uma das minhas experiências da sociedade norte-americana. A primeira coisa que surpreende quem ali chega é a liberdade com que se criticam as palavras e os actos dos homens públicos, dos governantes, dos sacerdotes, de todos aqueles que, de um ou de outro modo, dirigem ou governam. O logo está tão bem montado que chega a ser convincente, e pensamos que, provavelmente, até as excelentes piadas inventadas pelos judeus se incluem na economia (e na relojoaria) do albergue.
[…]

A mim parece-me que, quando escrevi A Bela Adormecida Vai à Escola, sátira contra tudo, me tinha colocado também fora, estava off-side, e por isso ninguém a aprovou, nem mesmo os defensores da arte comprometida. Não preciso de esclarecer que a escrevi com entusiasmo e convencido de que estava a gerar uma obra-prima: isto acontece a todos os artistas cuja juventude carece da experiência necessária para compreender os limites e as relatividades, e eu era então um desses artistas, embora não só a minha experiência fosse imperfeita como também a minha habilidade artística deixava um pouco a desejar. Situo o processo de redacção, se a memória não me falha, nos anos cinquenta e cinquenta e um, depois de Ifigénia e antes da decisão que tomei de abandonar a literatura, decisão precipitada e absolutamente fanática, mas justificada, que aconteceu mais ou menos em mil novecentos e cinquenta e três, e da qual saiu, paradoxalmente, O Senhor Chega. Esses dois ou três anos intermédios dediquei-os, entre outras coisas, ao estudo da arte do romance, não porque pensasse servir-me dela como autor, mas porque me fazia falta para o meu ofício de crítico.
A Adormecida é, portanto, anterior a esse período, e está escrita com o saber técnico que tinha retirado, talvez inconscientemente, pelo menos sem vontade, das minhas leituras. É certo que tinha lido muito, mas não tinha dado atenção suficiente a determinadas questões, problemas e maneiras, ou não lhes clava importância. Daí, por exemplo, essa constante presença, arcaica e agora, para rnim, tão divertida, do narrador na narrativa. Houve um tempo, contudo, em que lhe atribuí mais importância do que ela tem, assim como ao facto de a Adormecida ser uma narrativa linear. Agora já sei que romper a linearidade por princípio ou por preconceito é o mesmo que rompê-la por capricho ou por não ter nada melhor para fazer: os modos narrativos de que dispomos, que são os mesmos de sempre, três ou quatro, não há que ter ilusões, quando se usam porque está na moda este ou aquele, é a melhor maneira de nos enganarmos. Cada matéria exige o seu tratamento; a sua inserção no tempo e nos sistemas é imposta pela natureza daquilo que temos para contar, o problema está em descobrir o modo adequado. Agora creio que a linearidade da Adormecida não ê um defeito, mas o processo natural de contá-la.
[…]

A Adormecida, no entanto, não foi pensada como romance de personagens, entendendo a expressão ao modo realista, social e psicológico, mas de silhuetas mais ou menos carregadas de significação. Com este desfile tentei também causar uma impressão de barulho, de confusão, de disparate, mas, em qualquer caso, dura demasiado tempo…» In Gonzalo Torrente Ballester, A Bela Adormecida Vai à Escola, 1983, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1052-7.

Cortesia de Caminho/JDACT