Os Contos dos Cronistas
«(…) Por outro lado,
temos a perfídia da mulher traidora. Mas a que é devida esta absoluta ausência de tons corteses? Trata-se, como é
sabido, da primitiva forma do conto, ainda arcaica e de estrutura embrionária,
ou não é mais do que uma refundição do mesmo modelo que serviu ao conde Pedro,
realizado num ambiente popular e, por conseguinte, destinado a um público a
quem o espírito cortês da fonte não interessava, e era estranho, a um público
que se diverte só com os insucessos humilhantes do antagonista? Um indício de relevo, que me faz pender para esta última
hipótese, é dado pelo nome das personagens. Enquanto na versão maior a rainha
se chama Aldora e a
jovem e bela moura, causa de tantas infelicidades, é chamada Ártiga, que como vimos no modelo germânico, significa
alusivamente comprida de todollos bens,
na redacção sucinta, onde a personagem da moura é eliminada, a dama de
companhia da rainha que primeiro encontra Ramiro em Gaia chamava-se Ortiga, nome imediatamente mais
alusivo e que é uma evidente banalização de Ártiga, cujo sentido o público menos
requintado não estava, tanto quanto parece, em estado de captar.
Que a circunstância não
é casual, prova-se pelo facto de que, além de ter um nome derivado do da moura,
a donzela desempenhará também as suas funções no fim do conto, adquirindo ainda
o nome duma outra personagem feminina, o de Aldora:
Este Ramiro… baptisou Ortiga, e casou
com ella, e louvou-lhe toda sa corte muito, e pos-lhe nome D. Aldara. Assim
se vê claramente que, eliminada a personagem essencial de Ártiga, o autor da
nova versão não conseguiu apagar-lhe completamente os traços, empreendendo uma redução
da fábula ao essencial tipicamente popular. Uma vez que a redacção sucinta
parece cronologicamente anterior à do Nobiliário
de Pedro, julgo que a hipótese de uma fonte comum a ambas as versões seja a
mais atendível: enquanto o conde Pedro utilizou o modelo de forma adequada, o
primeiro refundidor, totalmente alheio a quaisquer veleidades literárias,
reduziu-o simplesmente, adaptando-o às exigências do seu público.
Mas será possível
formular alguma hipótese razoável sobre a estrutura do provável modelo comum às duas redacções? Em 1880 Gaston Paris, que pela
primeira vez publicou, na revista Romania,
os dois textos em edição sinóptica, levantou a hipótese de uma fonte leonesa,
já que a história é situada em Leão. Nenhuma prova nos autoriza, porém, a
confirmar esta ideia. Por mim, sou mais levado a crer num modelo francês, tanto
mais que a intriga essencial do Salmon
und Markolf se fundiu naquela época em França com os episódios
relativos ao lendário espírito de cortesia de Saladino e ao seu
extraordinário sucesso com as mulheres cristãs, retomados no Menestrel de Reims, no romance
de Jean d’Avesnes, etc.,
não sendo difícil entrever, por trás da nobre figura de Alboaçer Albozadam,
o mítico Salahad-din.
Seja como for, a Lenda de Gaia de Pedro, independentemente
de todas as conjecturas sobre as possíveis solicitações literárias que
contribuíram para a sua realização, é na verdade uma pequena obra-prima.
Para encontrar uma análoga imediatidade mimética e uma tal capacidade
expressiva numa obra histórica, dever-se-á esperar pelo grande Fernão Lopes.
Este último, porém, sendo embora um habilíssimo narrador, não condescende com
representações fantásticas. Mesmo quando cria verdadeiros romances, como o que
se refere à rainha D. Leonor, lasciva e
cruel, cinge-se constantemente aos dados históricos. Uma análise da sua
obra seria, portanto, estranha ao assunto.
Literatura de Corte: Cantigas
de Santa Maria e Cantigas de Maldizer
e D’escarnho
Examinados os contos dos cronistas é agora o momento de passar em
revista a original literatura em língua galego-portuguesa produzida nas grandes
cortes ibéricas. É uma posição central aquela que assume, neste âmbito, a
figura de Afonso X, que com o seu repertório devoto, cujo relevo narrativo
foi várias vezes sublinhado, e o profano, fortemente satírico, representa significativamente
as duas almas da Ibéria medieval». In Luciano Rossi, A Literatura Novelística na
Idade Média Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, CV Camões, Instituto
Camões, volume 38, série Literatura, 1979.
Cortesia de Instituto
Camões/JDACT