quinta-feira, 9 de maio de 2013

O Tempo e os Homens. Colecção Universitária. António Borges Coelho. «Todos os objectos marcados pela mão e a mente do homem constituem a matéria-prima da História. Os restos escritos, monumentais, as ferramentas no afeiçoar dos campos, o trem da oficina e da cozinha, os rituais da vida, do lazer, da festa…»

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Manipulador do tempo. Tempo e Memória
«O historiador é um manipulador do tempo. Prende-o num campo ou castelo de palavras. E qualquer um o desperta da mortalha das letras, como lembra João de Barros, com a luz dos olhos ou o chamar da voz. Mas verdadeiramente não é o tempo que prendemos mas tão-só os acontecimentos, sinais gravados noutros sinais. O tempo vivido, o tempo de Camões ou de Bocage, pode ser apreendido nas marcas da escrita, das ferramentas, das pedras e metais afeiçoados pelos homens. Por mais que fechemos as mãos, também o nosso tempo se escoa correndo no corpo, acendendo ideias, agarrando-se aos objectos, a todo um mundo cada vez mais complexo de sinais sonoros, visuais e mecânicos. Vivemos o tempo que é o nosso, ele carrega as chaves da compreensão do passado. Vivemos o tempo, tentamos compreender-lhe o sentido, influenciar a sua marcha.
Sem as marcas dos acontecimentos, o tempo não é legível, mesmo o que vive na nossa carne, nos nossos desejos, nas nossas crenças, nas nossas ideias e ideais. Ao fim dos anos, qualquer prisioneiro sabe que o tempo escorre e morre nas paredes, gasto pela repetição dos gestos sempre iguais. Faltam factos e coisas que assinalem a sua marcha inexorável. O manipulador do tempo, que é o historiador, usa ferramentas práticas, as línguas, a Paleografia, a Diplomática, a Epigrafia, a Geografia, a Sociologia, a Antropologia, o Direito, a Economia, a Filosofia, a Literatura, as diferentes ciências e saberes e toda uma panóplia de conceitos como população, forças produtivas, classes, ideologia, tempo curto, longa duração, que sei eu. E sempre a fita métrica e o compasso da cronologia. Ela mede e ordena o que parece sem ordem e permite ver sentidos no que parece não ter sentido.
Todos os objectos marcados pela mão e a mente do homem constituem a matéria-prima da História. Os restos escritos, monumentais, as ferramentas no afeiçoar dos campos, o trem da oficina e da cozinha, os rituais da vida, do lazer, da festa, da guerra e da morte. Parte fundamental dessa matéria-prima guarda-se nos arquivos, nos museus, nas bibliotecas, nas casas, nas cidades. O manipulador do tempo não pode viver sem informação, sabe que nunca é bastante e que corre o risco de sufocar com ela.
O historiador descreve, não ressuscita o que foi. Nunca consegue passar do conhecer para o ser. Produz discursos com os quais pretende captar na ordem do intelecto o ser dos acontecimentos. Leibniz escreveu que a História estudava os singulares, opondo-se à Filosofia que se vinculava aos universais. Mas, para conhecer, também o manipulador do tempo tem de captar os particulares, como o mesmo Leibniz sabia, pelos universais. Só através dos universais o processo histórico, a história real pode ser captada e compreendida, tanto quanto é possível compreendê-la. Mas se o discurso paira nos universais, se se move num universo fechado de conceitos, corre o risco de se despenhar contra a montanha oculta pela nuvem de palavras vazias. Não vê o relevo, os rios, as montanhas, os oceanos, as cidades, os particulares, os singulares.
Ainda pela própria natureza do conhecimento, o manipulador da Memória tenta alcançar a visão total mas a sua consciência não consegue captar de uma só vez mais que os sinais dos pequenos instantes. Quer alcançar o todo mas só o pode tentar pela parte. Por outro lado, a parte só é possível de ler numa perspectiva do todo. Um universo diferenciado de artesãos tece e destece a teia inacabada da História, desde o historiador-formiga, por vezes esmagado pelo peso de um novo documento, ao alfageme que afia a lâmina dos conceitos, ao inventor de novos instrumentos, ao arquitecto que, com maior ou menor engenho, traça o risco, dispõe as colunas que suportam os tijolos das palavras. O manipulador do tempo vem de uma marcha milenar. Velho guardião da Memória, irmão da Epopeia e da Tragédia, glorificador da Comunidade e do Poder, tabelião da verdade consumível ou levita que desce às catacumbas e liberta verdades oprimidas, o historiador torna conhecido o desconhecido, na descoberta do erro estende os patamares da verdade. Encontra novos sentidos mesmo sem sentido no processo humano. Rectifica e altera a visão recebida. Revela, exalta, incomoda». In António Borges Coelho, O Tempo e os Homens, Questionar a História III, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1076-4.

Cortesia Caminho/JDACT