«(…) Àquela hora da noite
estaria sua senhoria de pé? Recebê-lo-ia? Estenderia a sua mão até junto da
dele? Deixá-lo-iam ao menos chegar perto do rei?, tudo perguntas que o
cavaleiro até chegar ao destino não podia responder. Encurtando o caminho, o
mensageiro subiu a colina na direcção do Castelo de São Jorge, onde o rei
dormia a essa hora o sono dos heróis. Ali chegado, verificou espantado como as
portas se lhe abriram assim que anunciou ser enviado do adail-mor Diogo de Bairros. Aquela surpreendente facilidade
mais reforçou nele a importância da missão que o levava antes de todos os tripulantes
à casa do poder real, sentindo um desejo enorme de saber do que tratava a
missiva que transportava, uma tentação imprópria, que o mensageiro logo
reprimiu, não se atrevendo a quebrar o lacre que testemunhava a inviolabilidade
da carta e a identificação da origem. Finalmente franqueou as últimas portas
até à antecâmara onde o rei já o esperava. Lá dentro, a visão do monarca foi
para ele uma experiência única, ao contemplar o maior senhor de Portugal nos
seus mais simples preparos.
Vestido apenas com umas bragas
feitas de linho bragal, enfiadas à pressa quando o informaram da presença
do mensageiro, Afonso V mostrava à reduzida audiência um peito rijo, musculado,
reflexo da constante prática de cavalaria e do exercício das armas. Embora
tivesse fama de cuidar muito bem da sua imagem, uma vaidade que o distinguia
entre outros da sua condição, naquele momento, em que mal controlava a emoção,
o rei excluía mesuras e etiqueta inoportunas. Cá está o rei em pessoa. Desprovido,
natural, um homem como os outros, rememorava o cavaleiro. O que se seguiu
foi uma autêntica desilusão para o enganado homem, não tanto pelo prémio, que
acabaria sempre por ganhar, mas porque perderia o melhor do espectáculo. - Meu
muito amado senhor - reverenciou-se o mensageiro com um joelho por terra, a mão
direita no peito, a cabeça baixa e a carta na outra mão, aquela que lhe
impulsionava o braço ao encontro da mão do rei. Não terminou a frase. Afonso
V incapaz de controlar a ansiedade, interrompeu-o deseducado.
- Deixai-vos de preâmbulos,
dai-me célere o documento que trazeis convosco, posto que mal posso esperar -
disse-lhe, injusto, enquanto ágil no gesto lhe arrancou o escrito da mão. Precipitado,
o monarca voltou as costas ao surpreendido cavaleiro e a todos que estavam
presentes na sala, seguindo-o apenas o camareiro, seu confidente e homem de
confiança, para nos aposentos mais resguardados ler o conteúdo do documento que
há tanto tempo esperava com impaciente expectativa. Lá dentro, num gesto sem
reflexão, abriu logo a missiva, procurando nas palavras escritas uma
justificação para estar acordado àquela hora. Então, numa reviravolta estonteante,
a alegria invadiu o rosto do monarca, traindo nele a pose real que a notícia
desfazia e a hora autorizava. A mensagem chegava com as notícias esperadas. Num
ápice, os olhos, estremunhados pelas poucas horas de sono, deram lugar a um
brilho intenso, louco, gerador da mais incontida agitação. - Promessa cumprida! Promessa cumprida! Promessa
cumprida - clamava o rei, de um lado para o outro da sala pouco folgada,
elevando a voz de cada vez que pronunciava as palavras.
Deteve-se, por fim, fulminado pelo transcendente momento que estava a
viver, caindo desamparado de joelhos diante do oratório a um canto dos
aposentos. Mãos unidas, pescoço hirto, rosto erguido ao alto, lá foi
perscrutando o artefacto litúrgico onde estaria a imagem insubstancial de Deus.
Agradecia e evocava a memória do pai, o falecido rei Duarte, a quem tinha
feito aquela promessa, um voto que não lhe foi requisitado, antes assumido por
uma criança sem idade para reinar, e que, desde tenra idade, quando começou a
ter entendimento, sempre conviveu com o olhar triste do pai, sem meios nem apoios
para resgatar o ente querido deixado como refém, para que outros sobrevivessem
pelo seu gesto.
A sua obsessão terminava naquele dia. Dali em diante, o rei não queria
saber de mais nada a não ser o modo como haveria de festejar a novidade, pois o
Africano
só pensa nas grandes celebrações que vai realizar, dando-lhes o brilho e o
significado que o instante merece, sem descuidar em momento algum a sua própria
promoção. Não ignora, contudo, que só no final dos festejos poderá gozar os
louros do seu empenhamento, porque ao receber a missiva de Bairros, naquela noite, só estava concluída mais uma
fase da operação. A seguinte começaria logo depois de mais umas horas de sono,
quando desse início aos preparativos que tão grande acontecimento exigia.
Mas para quê tanta
precipitação? Afonso V já esperou tantos anos pela
conclusão quase feliz do acontecimento, esperará algum tempo mais até que se
perceba por que razão reza e dança com uma carta na mão, e só depois terá
legitimidade para comemorar.
O Princípio
Na madrugada de 14 de Agosto de 1433,
João
I deu o último suspiro. O velho rei, após quase cinquenta anos de reinado,
um dos mais longos da monarquia portuguesa, cederá o cadeirão real ao
primogénito da Ínclita Geração». In
Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da
Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.
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