sábado, 25 de maio de 2013

Os Passos em Volta. Leituras. Herberto Helder. «Seria mesmo a única forma agora possível de pensar nas coisas, de avaliar o mundo. Mas aí acabava o jogo. Não se podia dizer: “sou livre”. Não se ‘podia arriscar a liberdade’. E a pergunta: que ‘liberdade?’»

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Polícia
«(…) Nessa manhã de dezembro em que chovia (eu falaria depois a Annemarie da chuva lenta, longa), M. Maurice começou a duvidar da sua influência e da influência do partido comunista. Disse-me que já nada poderia fazer por mim. Seria melhor eu partir para a Alemanha ou a França, ou arranjar então lugar num barco que saísse de Antuérpia. Considerava as palavras do meu amigo enquanto bebia cerveja num bar perto da estação. No calor do bar a roupa fumegava. Gotas de água à volta. Calma solidão sem dor. Havia música. Meu Deus! A minha alma conhecia os seus caminhos. A terra era grande. Tudo quanto eu fizesse, cada coisa que me acontecesse, não me tornariam maior ou menor que a fé ou o desespero. Pois o desespero era antigo: uma delgada, tenacíssima raiz. Era uma experiência, um pensamento, um destino, algo que eu aceitava, que me induzia talvez a amar a vida. Estava só no meio da chuva tranquila. Podemos sempre beber uma cerveja como se fosse a última. Em cada instante a terra ainda consegue ser completa: é a única, e isso mesmo a renova.
Annemarie sentou-se à minha mesa. Vi logo o tamanho da sua solidão: tinha o tamanho do mundo. Ela era a criatura mais só do mundo. E a sua história apareceu, simples, tenebrosa, entre as nossas duas cervejas. Todas as histórias pessoais são simples e tenebrosas. Não me comovi. Comovido já eu estava: com as coisas, comigo, com a chuva sobre a cidade. Talvez houvesse uma irónica alegoria em nós dois ali
sentados diante dos belos copos frios, compreendendo ambos tão facilmente o que nos acontecia e iria acontecer que não tínhamos pressa. Poderíamos morrer ali mesmo. Esperávamos. Annemarie era francesa, de Lyon. Abandonara um filho de dois anos. O marido combatia na Argélia, talvez estivesse morto. Ela dizia que o amava, e porque não? O amor e o desespero e a desordem, isso é a nossa parte do jogo. Annemarie não queria regressar à França. Mas vivia na Bélgica sem documentos. Fora já posta na fronteira duas vezes: voltara, voltaria sempre. Que pode fazer uma pessoa senão voltar, estar fora, ser completamente estrangeira, não ter papéis? A terra é enorme. Paramos num sítio. E agora estamos sentados e procuramos, com a nossa história simples e desesperada, atrair o cuidado, o fervor alheio. É assim. Renovamos a espera inútil; o milagre onde não há milagres; a luz ao fundo, sempre ao fundo. Somos ilegais, em cada dia criamos uma rápida, brevíssima beleza surpreendente contra a face do pavor.
M. Maurice perdera a última esperança de me salvar. O partido comunista, a viagem de ida e volta em comboio até Clabeck, a chuva, uma impossível salvação, que salvação? Embrulhavam-se dentro de mim, e eu sentia-me embriagado, feliz, irresponsável: sentia-me como se estivesse perto de morrer. Agora uma mulher bebia cerveja na minha solidão, falava do filho que abandonara, do marido que estava na guerra. Pronunciava as palavras devagar, arrancava-as inexoravelmente a esse sempre vivo e sempre secreto vocabulário do medo e do empenhamento. Dizia sorrindo que estava perdida. Gostava da cerveja belga, achava Bruxelas insuportável. Sim, queria morrer. Queria morrer anonimamente, no fim do deserto. Eu percebia.
Os chuis farejavam à volta da Gare du Nord, farejavam-nos a todos: putas, chulos, vadios, indocumentados, ilegais. Sabiam que ela voltara: seria presa? Já o fora algumas vezes: não era o pior. Seria mesmo a única forma agora possível de pensar nas coisas, de avaliar o mundo. Mas aí acabava o jogo. Não se podia dizer: sou livre. Não se podia arriscar a liberdade. E perguntar: que liberdade? Eu também seria preso, repatriado: andaria depois por Lisboa a dormir em quartos de amigos, em camaratas públicas. À caça de um almoço, uma sopa, um copo de leite. Todos os lugares são no estrangeiro. E eu passaria junto ao rio, olhando a crespa e lívida massa das águas, a outra margem com o fumo vermelho das refinarias a sufocar a branca luz a prumo. E imaginava já a prisão em Bruxelas. Era preciso enganar a polícia. Rebentar de fome, sim, estrangeiramente, mas não perder nunca a liberdade. E a pergunta: que liberdade?» In Herberto Helder, Os Passos em Volta, Assírio & Alvim, 2009, ISBN 978-972-37-0119-7.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT