Pessoa Comemorado até aos Ossos
«O subsolo nacional, para usar a preciosa expressão do coronel Jaime
Neves, anda num desassossego. A semana passada foram desenterrados os ossos
de Gungunhana,
para serem mandados para Moçambique; esta semana vão mudar de sítio os
de Fernando
Pessoa. Com a indústria pessoana em frenética actividade no ano do
cinquentenário da sua morte, a multiplicação das teses, dos artigos, das conferências,
das homenagens, dos gadgets de
toda a espécie, o Parlamento, pela voz troante de Manuel Alegre, parlamentou
que havia que pôr os ossos do poeta fora do alcance dos coleccionadores de
recordações e do currículo dos universitários. E o Governo, com o por assim
dizer cuidado que sempre põe nas coisas culturais,
sobretudo quando se treta de ossos, mandou que se recolhessem e se guardassem
nos Jerónimos.
O afã fúnebre do chamado Poder já tinha notabilizado as recentes
comemorações do 10 de Junho. Na altura, o presidente da República condecorou,
perante todas as forças vivas da Nação alinhadas no Porto, um silencioso
cortejo de mortos que, não tendo sido contemplados com tamanha honra em vida,
só hão-de ter praticado agora, presume-se, os feitos do outro mundo que lhes valeram
as comendas. No Portugal europeu logrou-se finalmente inverter a antiquada
máxima pombalina, e desenterram-se os mortos e descuidam-se os vivos.
Só que o caso pessoano levanta inesperadas dificuldades a esta política
mortuária, e os coveiros literários encarregados do serviço pelo Governo vão
ver-se e achar-se para destrinçar, no amontoado de omoplatas, esfenóides,
escafóides, rádios, metacarpos, falanges, falanginhas, calcâneos, trapezóides,
etc., os do próprio Pessoa-ele-próprio, os de Álvaro de Campos, os de Alberto
Caeiro, os de Ricardo Reis, os de Bernardo
Soares e os de todas as outras pessoas
de que, como se sabe, a pessoa pessoana
era feita e é agora desfeita. Mesmo o Sr fulano de tal…, mais-que-perfeito conhecedor
dos labirintos da alma do poeta, não consegue, parece, entender-se com os do
esqueleto. Ao que se sabe, de Ricardo Reis, por exemplo, apenas se
encontrou ainda um ísquion e
um exemplar de Horácio…
E, todavia, o ministro dos Cemitérios quer, a todo o custo, evitar
cometer o erro que o antepassado seu homólogo cometeu com os ossos de Camões,
denunciado pelo próprio Camões no poema de Jorge de Sena,
e insiste em ter heterónimos e ortónimo em urnas separadas, para o caso de
futuros cinquentenários e centenários separados, já que, como é do domínio
público, nasceram todos eles, heterónimos e ortónimo, em datas diferentes...
A expedição aos ossos foi, até agora, a única coisa de notório parlamentarmente
feita pela obra de Fernando Pessoa, cuja perplexa alma, disputada pelos críticos,
continua, mais heterónimo menos
heterónimo, no mais anónimo desconhecimento geral, para além do tudo vale a pena e da presumível
declaração do Martinho da Arcada e do bagaço como monumentos nacionais.
A Comissão das Comemorações do Cinquentenário, criada no âmbito do
Ministério da Cultura, anunciou em tempos a peregrina ideia de promover edições
populares da poesia e da prosa de Pessoa, bem como o seu conhecimento
em línguas menos portuguesas que a nossa. Manuel Alegre não foi,
naturalmente, consultado sobre o assunto, mas não é crível que aceite que o
Governo abra mão dos dinheiros da Operação
Ossos, para tornar possível a iniciativa. O mais provável, pois, é que
continuemos eternamente a ter a edição da Obra
Completa a vários contos de réis por volume, e feita no Brasil, e os ossos
de borla nos Jerónimos para português ver...
In JN, 22 /06 / 1985
In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia,
1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio & Alvim, Porto, 2013, ISBN
978-972-37-1684-9.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT