O sangue, o vento, a guerra e outras circunstâncias
«(…) Fechado, pois, em mim próprio, e sem mais recursos que a memória,
posso escrever aqui uma dúzia de nomes, talvez nem cheguem à dúzia, e de alguns
deles não sei nada, absolutamente nada, nem como eram as suas caras, nem o que
fizeram, nem por que são meus avós ou bisavós: casais nascidos e crescidos que
um dia se conheceram, que acaso se amaram, foram felizes ou desgraçados e deles
provieram inimaginavelmente Gonzalo e Ángela, com as suas
histórias também às costas, com o seu destino, de que em parre fui testemunha,
mas que é deles, não meu; como não ordenaram em nenhum testamento que o contasse,
é sagrado, testemunho de silêncio: só do que é meu sou dono, e ainda assim
apenas em parte, a intimidade pessoal, aquilo que fiz sozinho, o que só a mim
diz respeito, mas tudo o que seja partilhado, vida dos outros, tão-pouco é meu,
tão-pouco posso contá-lo. Sempre me causaram certo mal-estar moral aqueles que
propalam as suas relações, mais ou menos em pormenor, com as mulheres, e lhes
põem os seus nomes, ou as descrevem minuciosamente, para que não restem
dúvidas.
Há experiências que convém selar depois de as termos enterrado, mesmo
que sejam da melhor matéria para a literatura. De meus pais recebi aquilo que
sou, o bom e o mau, e se o meu cérebro não pesa mais cem gramas, se as minhas
palavras não deslumbram, se a minha obra não causa espanto, não foi culpa
deles. Deram-me o que tinham, o que lhes haviam dado a eles. Seja como
for, poderia classificar as minhas qualidades em paternas e maternas, como os
apelidos, mas para quê, se se juntaram em
mim e me constituem? Deploro vivamente, por exemplo, não ter recebido deles
um grande talento lírico, não por inveja que me causem os maiores do ramo, mas
pelo gosto que dá, e o bem que soa, que nos chamem poeta. A minha mãe
não teria desgostado, mas vejo-me na obrigação moral de acrescentar que a minha
mãe se sentiu muito satisfeita comigo, apesar das minhas deficiências, e o meu
pai também, embora nenhum deles tenha atingido esse momento da vida em que,
durante alguns dias, um nome passa insistente pelas bocas de todos, bocas que depois
se calam, porque esquecem. Morreram com alguma esperança, os meus pais; antes
assim, do que desiludidos
Gostaria de imaginar aquela manhã de Santo António em que Gonzalo
e Ángela decidiram ir de romaria. A ermida do santo ficava longe, era
preciso dar a volta a um cor.. da ria, e Ángela estava já fora de contas;
mas falavam, as entendidas, ela era estreante, da conveniência de caminhar.
Pois olha, que melhor do que ir até Santo António da Cabana e descansar
à sombra dos castanheiros, sobre a erva do souto, aroma de frutos e alvoroço de
festa em redor! Um caminho estreito; de um lado, o monte, do outro, o rio. E,
quanto a gente, todos os componentes de um quadro de costumes, sem que
faltassem a gaita e o tamboril, pois ainda que o relógio já não o marcasse,
corria o século XIX. Tinha passado, havia pouco, o cometa Halley: terá
influído, o seu eflúvio, no corpo ou na alma do rapaz esperado? Sabe-se lá o
que há de certo nas histórias dos astros e das suas cabeleiras! Gonzalo é
bastante jacobino, o que lhe ocorre é a morte do conde Leão Tolstoi, um
escritor russo de quem se fala muito, de quem se lê alguma coisa. No ano em que nasceste morreu Tolstoi,
disse-me muitas vezes, e não sei se o dizia como querendo dar a entender: Aí tens um vazio que podias preencher.
Mas não, não creio que alguma vez lhe tenha passado pela cabeça, a mim sim, a posteriori. Ter-me-ia preferido
almirante, o meu pai.
O que ele não sabia, o que não poderia, pois, recordar, era que num dia
também de Santo António, 13 de Junho como aquele, numa casa de Lisboa,
alta, de cujas janelas se vislumbrava o estuário e, um pouco mais além, o mar;
num 13 de Junho de bastantes anos antes, tinha nascido um poeta de quem eu
acabaria por ser devoto, e que, a partir do momento em que conheci a data do
seu nascimento, me senti interessado pela coincidência, me senti até inquieto,
e a minha imaginação rompeu os freios e prescindiu do seu habitual recurso à
ironia. Que rebuliço não se teria armado, se eu fosse adepto da astrologia,
cliente de adivinhos, destro no uso de tarotes e outras cartas! Tive a sorte de
me limitar a uma investigação curiosa da vida do poeta e à convicção subsequente
de que, salvo em certas preferências literárias, e em que eu teria assinado de
bom grado a maior parte dos seus versos, não nos parecíamos em nada». In Gonzalo
Torrente Ballester, O Sangue, O Vento, A Guerra, e outras Histórias, Contos,
Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0979-0.
Cortesia de Caminho/JDACT