O Mouro Lazeraque e o Infante Fernando
«Os humanistas sempre mantiveram uma relação privilegiada com a
história e alguns chegaram mesmo a notabilizar-se com obras históricas. Está neste
caso Jerónimo Osório, o famoso bispo do Algarve. A sua fama europeia, terá
sido, talvez, o autor português mais conhecido no estrangeiro no século XVI,
ficou a dever-se ao vasto conjunto da sua obra se inclui o De rebus Emanuelis gestis
publicado pela primeira vez em Lisboa em 1571.
Esta obra tornou-se tão conhecida que, além de nove edições na versão
original em língua latina até 1597,
teve também, só no século XVI, onze traduções, todas em francês, e viria a ter
ainda mais sete, uma novamente em francês, duas em holandês, uma em inglês, uma
em alemão, ainda que de forma abreviada, e duas em português. Foi, certamente,
a leitura do De rebus Emanuelis gestis que levou Montaigne a afirmar nos
seus Essais:
l’évesque Osorius, non mesprisable historien
latin de nos siècles.
Mas o gosto do humanista português pela apresentação de dados
históricos já tinha antecedentes, uma vez que estes vão surgir, embora em
pequenos quadros, praticamente ao longo de toda a sua obra. Como seria de
esperar, e a própria obra de cariz histórico de Jerónimo Osório demonstra-o de
forma clara, é a história de Portugal que vai merecer maior atenção por parte
do nosso humanista. Neste aspecto, se nos debruçarmos sobre o tratado De
gloria, publicada pela primeira vez em Coimbra em 1549, ao contrário do que a maior parte das obras de carácter
bibliográfico referem, quando adiam a edição princeps desta obra para 1552,
em Florença, mais algumas reminiscências do conhecimento profundo que o
humanista possuía da história portuguesa.
Lembremos, para referir só algumas, todo o conhecimento da história
contemporânea revelada pela descrição da actividade do rei João III, incluída na
carta dedicatória que, na edição prínceps,
iniciava esta obra, recordemos, ainda, ainda, as referências ao segundo cerco
de Diu, ocorrido em 1546; não
esqueçamos também uma breve abordagem das navegações portuguesas, nomeadamente
através do conhecimento que os marinheiros e mercadores portugueses tiveram da
China. Vejamos, agora, com mais pormenor o aproveitamento que Jerónimo
Osório faz de alguns acontecimentos ligados à morte do Infante Fernando. Antes, porém, importa verificar qual o contexto
que leva o nosso humanista a optar pela utilização deste episódio.
Como já observámos, esta referência a uma das personagens marcantes da família de Avis surge no tratado De
gloria. Ora, como o próprio nome indica, esta obra pretende abordar a
problemática da glória e tentar demonstrar que, apesar de alguns aspectos
pretensamente negativos, ela é um bem para a humanidade desde que inserida numa
perspectiva cristã. Para melhor poder desenvolver toda esta temática, vai o
futuro bispo de Silves pôr em cena três
personagens: ele próprio e dois colegas de estudo no seu percurso italiano, o
espanhol Antonio Agustín e o francês Jean Matal. Para cenário é
escolhida uma casa de campo nos arredores de Florença, cuja posse é atribuída a
Agustín. Quanto à forma literária, a opção vai para o diálogo, na
esteira de Platão e, sobretudo, de Cícero, mas sem se apresentar como
uma cópia fiel dos modelos adoptados.
Osório opta, deliberadamente, por um confronto directo entre
dois grandes interlocutores, Agustín e ele próprio, e apresenta, ainda,
uma terceira figura, Jean Matal, que quase se limita ao papel de
figurante; é, contudo, um figurante que reserva para si, desde o início, o
papel de árbitro na discussão que se vai travar e que, no final, acaba por
trazer alguns pontos importantes para serem analisados. Agustín, que no
seu íntimo, aprecia a glória, vai, no entanto, desencadear um ataque fortíssimo
contra ela e chega mesmo a defender que se trata de um conceito totalmente
incompatível com a doutrina cristã e que, como consequência, deve ser afastado
do espírito humano. Este ataque cerrado à glória vai ocupar os dos primeiros livros
do tratado osoriano.
Os três livros restantes vão ser utilizados para a resposta, ainda mais
forte, que Osório vai dar à argumentação do seu colega espanhol. É na
intervenção de Osório, como seria de esperar, que nos surge o episódio da morte
do Infante Fernando (o Santo?) e, por sinal, quase logo no
início da sua argumentação. Antes, porém, de nos debruçarmos sobre o episódio
propriamente dito, convirá talvez verificar o contexto em que ele é apresentado
no esquema argumentativo do humanista português». In João Manuel Nunes Torrão, O Mouro
Lazeraque e o Infante Fernando. Um ‘Exemplum’ de Jerónimo Osório, Revista
Biblos, volume LXVII, Universidade de Coimbra, 1991.
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