A Morte do Cisne no Campo do Leão
«(…) O duque Afonso recuou, não sem obrigar o irmão a ameaça-lo. Foi um
estratagema, o de Coja, onde o duque
chegou fora de horas, sem dar tempo para que a batalha estalasse, fingindo rer
organizado o arraial com suas tropas de batalha. O Regente Pedro preparou-se
belicamente para dar a resposta condigna e o duque, com a sua consciência
tranquila porque fizera denunciar a
rebeldia e os ímpetos guerreiros do
irmão, afastou-se durante a noite com a pouca gente que lhe era leal. Era a
forma de colocar o Regente Pedro ainda em pior situação e, ainda por cima,
podia explicar ao rei que vinha em paz, concórdia, como prometera, e fora o
duque de Coimbra que literalmente o forçara quase à batalha… E lá foi, com os
seus apaniguados, aquele velho quase octogenário, atravessar os velhos Montes
Hermínios, à sorrelfa, como um ladrão, neste caso um infeliz velho que, para manter a sua palavra de
servidor leal, que arrostava com o frio, a neve, o mau tempo para chegar
perto do rei meu senhor, com as mãos
limpas do sangue fraterno. O destino, que lhe entortou a alma, entortou-lhe
nessa quase grotesca jornada, o corpo. Apanhou tanto vento gelado que as
articulações cederam e ficou até à morte com o pescoço torcido.
Nunca mais conseguiu erguer a cabeça. Sempre a olhar o chão, trôpego,
como um animal que rasteja. Logo que recolheu a sua gente que o seguiu, voltou
para Santarém. Não sei se Pedro
gostou de saber que o Infante Henrique não pôs qualquer obstáculo a que o irmão
passasse pelas suas terras. O que é certo é que não emitiu qualquer protesto e
o duque levou até à Corte uma carta de concórdia, ainda por cima curvado com os
louros do martírio e recebido triunfalmente, depois do filho preparar o terreno
para o efeito. Estávamos, entretanto, em 5 de Abril de 1449 e o Regente Pedro, nas margens do Mondego, sabe que o fim dos
tempos se aproximam e que o Anjo da Morte bate as asas negras sobre a
sua cabeça. Com ele tinha os amigos, o grande amigo que uns anos antes viera de
Ceuta, Álvaro Vaz Almada. Os irmãos, um, desde sempre se mantivera
afastado, o Barcelos; o outro,
Henrique, abandonara-o. A
verdade foi mais complexa. Estavam os campos em posição de combate quando viera
da Corte uma ordem do rei intimando o tio a deixar passar por suas terras o Bragança, visto ele vir em
serviço da Coroa. O Infante, danado, ofendido, mais que isso, ferido no seu
orgulho de cavaleiro, tio e genro do rei,
não acatou a ordem pela resposta intempestiva que deu. Entretanto, o infante Henrique,
tentando pelo menos na aparência, dar um
caminho benéfico ao assunto, enviara a Penela o bispo de Ceuta para solicitar
também ao irmão que deixasse passar o Bragança.
O duque Pedro respondeu que só o faria se o irmão não viesse como para começar
a guerra... E o bispo percebeu o recado. Partiu. De resto para quê insistir, se
o próprio Infante Henrique, que nem se deu ao trabalho de ir pessoalmente
aplacar os irmãos, já debandara para Santarém?
E porque não, se a força se achava ali, se tinha também o seu destino a
cumprir e ele só podia cumprir-se do outro lado? De resto, o irmão sempre se
opusera à sua política africana e ele, Henrique,
tinha preceitos a obedecer, tinha as determinações da sua Ordem de quem era
mestre e administrador. E não era o irmão Pedro membro da outra Ordem, a de S.
Jorge, cuja face aparente, régia, era a da Jarreteira, a Garrotea dos iniciados de S.Jorge que
foi príncipe de Capadócia e morrera
martirizado sob as ordens do terrível imperador Diocleciano, que fora o
flagelo dos desgraçados cristãos?
O Regente Pedro, com cinquenta e sete anos, alto, forte, embora esguio,
com tipo de inglês, quase nunca perdia a calma mas começava a ficar cansado,
gasto, farto, talvez até compreendesse esse irmão
Henrique todo dominado pelo seu sonho. Porque não? A cada um deles
coubera um destino diferente e implacável também como o é sempre o destino...
Nunca ninguém o acoimara de ingrato ou falto de compreensão e magnanimidade
para com a família, se o bastardo e a cunhada se não tivessem imiscuído no seu
sonho, na sua determinação de construir o seu Désir, a divisa que
escolhera. E eles nem sequer o tinham feito por um motivo grandioso». In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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