Inocêncio II e o juramento de vassalagem de Afonso Henriques
«(…) Este o a sua facção queixaram-se por isso junto do
papa, afirmando até, entre outras coisas, que João Peculiar pisara aos
pés a hóstia sagrada e repelira uma bula papal que lhe fora apresentada,
dizendo que no território da sua jurisdição era ele o papa. Embora não possamos
ter dúvidas sobre a gravidade da questão suscitada, trata-se evidentemente de
exageros.
NOTA: A crítica de J. A. Ferreira, Fastos episcopais, tem até certo ponto indubitavelmente razão, mas
vai longe de mais, visto não poder duvidar-se da autenticidade das três reclamações.
Ferreira atem-se também quase simplesmente ao terceiro destes protestos; claro
que é precisamente esto o mais elucidativo.
Inocêncio II já conhecia também João Peculiar
suficientemente para não reagir. Admoestou breve as suas intromissões nos
direitos conimbricenses e confirmou ao bispo Bernardo a independência na
direcção da sua diocese. Só quando acresceram, às anteriores, novas queixas,
desta vez do cabido da Sé de Braga, o papa se resolveu a convidar o arcebispo a
comparecer em Roma para se justificar. João Peculiar obedeceu à intimação.
Mas antes de se pôr a caminho, a situação geral sofrera greve mudança. Até
agora nas relações entre Roma o Portugal, tanto quanto nós as seguimos,
estivera a iniciativa sempre do lado dos portugueses. Certamente os cardeais-legados,
que eram mandados à Península com intervalos regulares, visitavam também
Portugal a maior parte das vezes, senão sempre. Demonstrá-lo, só o podemos
fazer com a visita de Boso em 1117,
depois com a de Deusdedit em 1124
a de Humberto em 1129 e a de Guido
em 1136. Mas em nenhuma destas
missões ficaram vestígios de actuação mais profunda.
Tanto quanto se pode ajuizar, os cardeais limitavam-se
essencialmente a convidar os bispos a tomar parte nos concílios que eles
convocavam no final da sua legacia em território castelhano, a fazer com que os
concílios dessem solução às suas dissenções. Só a derradeira missão de Guido
em 1143 trouxe mudança a esta
tradição. Possuímos grande número de notícias sobre a actividade jurisdicional
por ele desenvolvida em Portugal. Esteve no Porto e pronunciou uma sentença na
questão existente há decénios sobre as fronteiras entre esta diocese e a de
Coimbra. Depois seguiu para Coimbra, onde se ocupou das questões suscitadas entre
o bispo e os cónegos de Santa Cruz, e de outras questões respeitantes às
igrejas de Santa Justa, S. João e Santiago e ao convento de Lorvão. Ao mesmo
tempo, não desdenhava aceitar do prior do cabido da Sé um bom presente em
dinheiro, facto a que ligaremos pouca importância se nos lembrarmos dos regularmente
repetidos presentes do arcebispo de Santiago ao papa e aos cardeais. Em todo o
caso, na pessoa do legado era invocada a autoridade da Cúria, geralmente, para
solucionar litígios, e desta forma encontrava o legado oportunidade de fazer valer
o ponto de vista da Igreja romana onde, e sempre que, o julgasse conveniente.
Muito mais importante porém do que isto, eram ainda as relações
que se estabeleceram entre o cardeal e o próprio rei. Não há nenhuma fonte
narrativa que nos conte o que se combinou entre os dois. Os documentos porém
referem-nos este facto tão importante na sua nudez: Afonso Henriques prestou juramento
de vassalagem ao papa Inocêncio II na pessoa do cardeal Guido e encomendou o
seu território a S. Pedro e à Igreja romana.
NOTA: Na sua carta a Afonso Henriques distingue Lúcio II: 1.º o juramento de vassalagem prestado
nas mãos do cardeal Guido e a doação do território; 2.º a promessa de tributo feita mais tarde por carta (postmodum... per litteras tuas). A última
é a carta Claves regni de l3 de Dezembro do 1143; o primeiro deve fixar-se evidentemente durante a estada de
Guido em Portugal. Pois não se pode deixar para a reunião de Zamora o juramento
de vassalagem que era dirigido contra Castela. Isto reconheceu-o justamente
Herculano I; pretendeu porém colocar o juramento de vassalagem algum tempo
depois das negociações do Zamora, vendo nisso uma tentativa de iludir o que ali
fora estipulado. Contra isto fala contudo o itinerário do cardeal que nós hoje
podemos seguir nas principais jornadas. A sua visita a Portugal cai antes do
concílio de Valladolid, portanto aí pelo Verão de 1143. A 19 e 20 de Setembro teve lugar o concílio de Valladolid, a
4 e 5 de Outubro a reunião de Zamora. Que o cardeal depois disto visitasse
Portugal uma segunda vez, é sobretudo improvável porque a 27 de Novembro de 1143 já ele reunia novo concílio em
Gerona, e em 17 de Fevereiro de 1144
já se encontrava em Roma.
Pretendeu-se relacionar este acto com a teoria de Gregório
VII, segundo a qual Espanha era propriedade de S. Pedro. A mim porém não me
parece isto justificado; aquelas declarações de Gregório VII já então estariam certamente
esquecidas. A soberania feudal do papa era para a Cúria naturalmente de grande valor
teórico; mas em territórios distantes que não eram de importância para a
política territorial da cúria, como o era por exemplo a Baixa Itália, não tinha
de facto consequências no sentido de direitos romanos de domínio, mas antes
era, geralmente, puramente nominal, a não ser quanto ao pequeno tributo pago. Tal
soberania ere por isso considerada como vantajosa por todos os príncipes que
procuravam desta forma legitimar a sua posição e se queriam libertar doutra
soberania, sujeitando-se à dependência feudal da Santa Sé. Que também era este o pensamento de Afonso Henriques…»
In Carl Erdmann, O Papado e Portugal no primeiro século da História
Portuguesa, Universidade de Coimbra, Instituto Alemão da Universidade de
Coimbra, Coimbra Editora, 1935.
Cortesia de Separata do Boletim do Instituto Alemão/JDACT