«Esta é a história que com mais solenidade e mais por miúdo teria que
lhes contar, traduzida talvez do texto português, e com a requerida erudição
como garantia de que eu não a inventara, de resto, por estas costas, eram
muitas as gentes que a conheciam, e se agora já se não recorda, ao desinteresse
dos jovens pelo passado e pelos seus longínquos genitores se deve. Mas em
bastantes casas e casarões de campo, de cidade ou de marinha, campeia a silhueta
da Sereia nas pedras heráldicas. Haveria, digo, pois, que concluir essa
advertência. Mas, como? Assim,
porque sim, ao princípio, com parecidas palavras: Quem não ler isto, não compreenderá o resto? Ou habilmente
emulsionada no relato, como chave explicativa de uns acontecimentos até então
enigmáticos ? Não teria sido má ideia, não, fazer do desaparecimento de Alfonso
Marinho um romance policial, e do texto de Barcellos em lusitano a
explicação do mistério; mas aconteceu, entre outras coisas, que Alfonso Marinho
desapareceu à vista de algumas pessoas, e que não ia sozinho.
Tinha, finalmente, ao meu dispor, quem
duvida?, muitos outros procedimentos tradicionais, mas nenhum me
satisfez, o mesmo me sucedeu, como se viu ou se verá, na história que intitulo A Pousada dos Deuses Amáveis, e eu considerava-me
com provável justiça incapaz de qualquer invenção original. E assim foi ficando
a história dos Marinho de Vilaxuán sem escrever, embora a tenha contado
muitas vezes, e sempre com diferentes palavras, as que me vinham à cabeça. Como é que o fiz? De várias
maneiras. O piscar de olhos e a citação erudita, quando se está frente a
frente, revelam-se mais aceitáveis, ou talvez por cortesia ninguém lhes faz
objecções, e salvados os primeiros escolhos, o induvidável encanto da história
faz esquecer essa muleta em que se apoia o meu conto.
Esses Marinho de Vilaxuán eram um tanto parentes da minha
mulher, mas por linha feminina, de maneira que não coube nada do sangue da
Sereia à Josefina, que então era minha noiva. Insisto: coisa de sogras por um
lado e por outro. Mas davam-se bem e mantinham amizade, apesar da distância:
convidavam-se para os casamentos, para os baptizados e para as festas dos respectivos
padroeiros e nunca se esqueciam de dizer, quando vinha a propósito: Ah, sim, Vilaxuán! Eu tenho lá, parentes!
De maneira que quando Josefina e eu estávamos para casar, achou-se conveniente
que fôssemos visitar os Marinho, um dia, para me conhecerem e nos darem os
parabéns, e desta visita se tratou por missivas e recados. Do casamento já
estavam ao corrente, e de mim tinham-lhes chegado, segundo depois soube, as
piores informações: que carecia de ofício que isso de ser escritor era um
chorrilho de ilusões, e que onde é que estavam os livros que o demonstrassem:
opiniões saídas de Vilaxuán por escrito e que secretamente Josefina julgava
desbaratar com a minha presença, pois supunha que eu ia parecer simpático aos
seus parentes». In Gonzalo Torrente Ballester, El Cuento de la Sirena, Dafne Ensueños,
O Conto da Sereia, Lenda dos Marinhos, Difel, Lisboa, 1986.
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