Em busca do conceito de História
«Desde remotos tempos que a lembrança dos feitos do passado funciona
como reserva colectiva onde se vão plantar os sarmentos da coragem, onde se
pisa o rubro das bandeiras. Dessa lembrança abusam os demagogos e os charlatães
mas inspira igualmente os políticos honestos e os poetas. Essa lembrança organizada alimenta a sociologia, a
economia, a política, a antropologia. Recolher, organizar, nos seus diferentes
domínios, essa reserva colectiva constitui a tarefa das ciências da História. Só há uma ciência - a da História
(A Ideologia Alemã). Ela é a ciência das ciências do Homem. Ao
reivindicar este papel de charneira das ciências sociais, a história assume
então uma evocação imperialista, a sua vocação
totalizante.
Mas, dialecticamente, na sua procura de rigor, a História acantona-se,
espartilha-se, divide-se em ciências em miniciências: história económica,
social, das mentalidades, das instituições políticas, quantitativa, conceptual,
história da arte, das ciências, da filosofia, história da História, etc. Mas de que história falamos nós? Da de
Collingwood: inquérito, através de provas, sobre as acções humanas praticadas
no passado - res gestae - com o
objectivo do autoconhecimento humano?
Da de Jacques le Goff e Pierre Nora: ciência
do domínio do passado e consciência do tempo, como ciência da mudança, da transformação? Da de Louis Althusser:
continente das ciências, continente
proibido, aberto ao conhecimento
pela obra de Marx?
Poderíamos continuar as citações. O vocábulo história aparece-nos,
pois, inchado de significados o que torna o seu manejo aberto a muito tipo de
ambiguidades. O caminho acidentado que pretendo seguir nesta busca do conceito de História
principia com um exemplo que avise
o leitor da complexidade da tarefa. Deter-se-á depois sobre a prática actual
dos profissionais portugueses de História mostrando com esta prática que a
História se faz e de diferentes maneiras. Não se escandalizem os defensores da
ciência pura, da história pura, a vida social contamina, sobretudo
os mais inocentes... Tentarei a
seguir elucidar os conteúdos que se encobrem no vocábulo história.
Mas trata-se apenas de um começo. Este trabalho prosseguirá com a
análise dos conteúdos da palavra história e com uma tentativa de definição.
Numa segunda parte abordar-se-á a problemática das relações da história com as
outras ciências sociais. Finalmente, numa terceira parte, serão lançadas
algumas achas na fogueira dos problemas da prática viva dos historiadores, na
dos problemas que ele defronta no seu trabalho teórico. Mas estou a transgredir
as indicações de Hegel: nada mais
impróprio e inadaptado numa obra (filosófica?) do que tratar logo no prefácio
do fim e das relações que a obra estabelece com obras anteriores ou
contemporâneas.
Uma história exemplar
Iniciaremos esta reflexão sobre a História e o seu conceito através de
um exemplo, para nós o mais comum. Assim, todos julgamos compreender o sentido
das palavras História de Portugal e,
no entanto, não nos situamos todos no
mesmo plano de compreensão. Notemos de passagem que História vincula a relação pelo adjectivo ou pelo determinativo: universal,
económica, social, de Portugal, das mentalidades. Deixemos também na sombra
por agora a História ou, se
quiserem, deixemos seguir em surdina no primeiro termo a ideia de narração,
conto, de narração-compreensão, de prática-teórica e fixemo-nos no protagonista,
no segundo termo, Portugal.
l. O herói, o protagonista
desta História é colectivo. Trata-se, portanto, de relatar compreendendo os acontecimentos
principais(?), os laços, as cadeias(?) que prenderam os homens e as
mulheres que, em grupos coesos e contrários, sucessivamente se afrontaram
nestes actuais noventa e um mil quilómetros de comprido. Mas onde pôr o acento? Nos acontecimentos ou nas cadeias? Existem laços que nos prendem com uma necessidade de ferro como pretende Marx? Laços de todo o tipo:
económicos, sociais, espirituais? Será possível reconstituí-los encadeados no seu movimento? E quando se
fala em grupos que se afrontaram
não é já saber afinal uma linha de força
central desta História?
2.Dez milhões são os
portugueses que hoje vivem nesta faixa ocidental. É de incluir ou não no nosso
relato todos os que emigraram e morreram e filharam
em terras estrangeiras? É de ignorar como tem sido feito geralmente todo o
rio subterrâneo que leva a negar Portugal trocando-o ou fugindo para outras terras? Devemos
deixar de fora as comunidades que no
exterior se organizaram? Por outro lado, dever-se-ão integrar na História de Portugal as acções e
reacções das nações que no passado foram subjugadas pelo Estado português e ficaram sujeitas a laços comuns?
3. Depois que narrar? Os acontecimentos importantes da categoria todos
os homens ou só os acontecimentos relacionados com os chefes nominais ou reais? Mas como narrar os todos os homens? Através do
típico? Como achar o típico? Que rejeitar? E a fórmula típico não
arrasta ainda consigo o problema do acento a pôr nas estruturas económico-sociais,
políticas e mentais? Quanto às
cadeias que nos prenderam e prendem, como
descobri-las? Através dos grupos?
Através dos chefes? Através do que disseram os chefes ou os clercs por eles?» In António
Borges Coelho, Questionar a História, Ensaios sobre História de Portugal,
colecção Universitária, Editorial Caminho, Lisboa, 1983.
Cortesia de Caminho/JDACT