sexta-feira, 24 de maio de 2013

Antero ou a Noite Intacta. Eduardo Lourenço. «… ocasião para fazer o elogio do “pensamento não sistemático”, aberto, onde a diversidade ecoe, contrariamente ao que seria próprio de uma igreja. “Uma síntese filosófica”, escreve, “não é um símbolo teológico”»

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«(…) Como o antigo mundo de Aristóteles, o que chamamos cultura, tem horror do vazio. A configuração trágica da obra e da vida de Antero, a primeira entre nós que assumiu esse perfil, é odiosa a gregos e troianos. Como todas as outras que no seu rasto conservam a dedada da aventura anteriana e que só um ludismo menos transcendental que o do autor dos Sonetos salvou do mesmo processo de ocultação sublimada: a de Pessoa, de Sá-Carneiro, de Raul Brandão, de Régio, de Casais Monteiro, entre outras. A nossa cultura, tradicionalmente contemplativa e ontologicamente feliz, suporta mal um desmentido à sua mitologia como o representado por Antero. Amigos e inimigos, à esquerda e à direita, com raras excepções, uma delas é a de Sant'Ana Dionísio na peugada de Leonardo Coimbra, preferiram dissolver o trágico anteriano na patologia, no temperamento, mera desventura do corpo doente que em nada afectaria a autónoma liberdade com que soube descortinar sob o sem sentido da vida uma harmonia de outra ordem. Que a desejou, que na sua busca implicou os mais altos dotes do seu espírito, não pode ser contestado. Mas que a não encontrou e que com igual intensidade assumiu o pensamento da sua ausência, a ideia da Vida como ilusão universal, menos contestado pode ser ainda. A sua canonização não pode velar a anti-Mensagem (ao menos na leitura perversa que se costuma fazer de Pessoa) da obra de Antero. Ela é uma pedra negra no caminho de rosas com que atapetamos a nossa sensível alma lusitana. É por isso que todos os nossos césares da cultura e da vida passam cautelosa ou iradamente ao lado.

Antero e a Filosofia
Os sistemas caem: os cultos desfazem-se: só os poemas parecem cada vez mais jovens e mais belos. In Prosas

No tempo filosófico que é o nosso, mais atento à impotência da linguagem que ao seu original poder encantatório, que estatuto podemos reservar a um texto como o das Tendências, onde todos os ecos espiritualistas e éticos da filosofia moderna, de Letbnrz a Kant, de Fichte a Ravaisson se misturam, numa espécie de remake de um sermão de Bossuet ecoando num templo vazio? O próprio Antero, nas páginas de comentário àquilo que ele julga ser a tendência metafísica dos tempos futuros, duvida que esse tipo de considerações releve da síntese filosófica que dele se esperava:
  • Dir-me-ão agora alguns, e não dos somenos, que essa pretendida síntese não passa, afinal, duma certa unidade de vistas gerais e uma conformidade de tendências, que pode, sem dúvida, acentuar-se ainda mais e ampliar progressivamente o terreno neutro ou comum onde se encontram irmãs as doutrinais rivais, mas não chegará nunca a constituir uma verdadeira unificação sistemática, o símbolo uniforme e completo do pensamento moderno.
Vale a pena ler o resto do parágrafo e mesmo as últimas páginas de autojustificação de Antero. Elas antecipam já o essencial das reticências futuras a respeito do valor do seu pensamento e até do seu carácter filosófico, ao mesmo tempo que lhe propiciam a ocasião para fazer o elogio do pensamento não sistemático, aberto, onde a diversidade ecoe, contrariamente ao que seria próprio de uma igreja. Uma síntese filosófica, escreve, não é um símbolo teológico. Provavelmente, Antero tinha consciência de que esta defesa deslocava a questão do seu lugar exacto. O sentimento agudo, e, sem dúvida, crucificante, das suas carências, naquele domínio que mais do que nenhum lhe importava, acompanhou-o sempre. Porventura, não será excessivo imaginar que tal sentimento se encontra no âmago da sua tragédia como tragédia não-filosófica, mas banalmente humana. A esfinge aos pés de quem sucumbiu não foi outra que a Filosofia mesma. Em todo o caso, o ídolo que para ele se tornou». In Eduardo Lourenço, Antero ou a Noite Intacta, Gradiva, 2007, ISBN 978-989-616-181-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT