«Intentava, assim, levar de vencida um atraso de várias décadas e o
tradicionalismo reinante, no Estado e no próprio corpo docente universitário.
De todo esse labor, realizado de mãos dadas com outros matemáticos e
investigadores, de Lisboa e do Porto, viriam a nascer, sucessivamente, diversas
instituições, o Núcleo de Matemática, Física e Química (1935), o Centro de Estudos de
Matemáticas Aplicadas à Economia (1938)
e, em seguida, a Sociedade Portuguesa de Matemática (1940). Igualmente, foram lançadas
algumas publicações científicas, entre elas ocupando lugar de relevo a Gazeta de Matemática, surgida em 1940. Oito anos mais tarde, já
gravemente doente, Bento Caraça
ainda pôde impulsionar e colaborar no lançamento da Revista de Economia, encabeçada por um numeroso grupo de
investigadores, muitos deles seus antigos discípulos.
A actuação inovadora do professor e do pedagogo, a actividade pioneira
do cientista e, ainda mais, a lucidez e a determinação da intervenção política
de Bento Caraça de há muito constituíam
para Salazar e o seu regime um pesadelo de todas as horas. Por tudo isto, em
Outubro de 1946, e sob o pretexto da
assinatura e divulgação pública do documento O MUD perante a Admissão de Portugal na ONU, o ditador não
teve pejo em demiti-lo, assim como a Mário Azevedo Gomes, de professor
do seu Instituto, primeiro acto da monstruosa vaga de demissões que, em Junho
do ano seguinte, iria decapitar a nossa Universidade de um grande número dos
seus melhores quadros.
Em Luta Contra a Guerra e o Fascismo na Europa
As preocupações intelectuais de Bento
Caraça não podiam, no entanto, ter por confins as salas de aula do edifício
da Rua do Quelhas, nem tão-pouco se esgotavam nas acções de investigação
levadas a cabo no âmbito do Movimento Matemático, do CEMAE e da Gazeta de Matemática ou nas tarefas de
presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática. Intelectual lúcido e
atento aos problemas do mundo e do país, profundamente fiel às suas origens, Bento Caraça conhecia bem a grande tarefa que está posta, com toda a sua
simplicidade crua, à nossa geração – despertar
a alma colectiva das massas. Sabia também, como afirmou mais adiante na mesma
conferência, que precisamos para não
trair a nossa missão, de nos forjarmos personalidades íntegras, de analisarmos
o nosso tempo e de actuar como homens dele.
E sabia, igualmente, que as frentes de luta pela cultura, pelo ensino,
pela ciência, não podem ser dissociadas das frentes de luta económica, social e
política, todas se integrando na frente mais ampla e abrangente da luta pela
transformação da sociedade. Os primeiros passos desta caminhada terão sido
dados, talvez, à volta de 1928-29.
Existe no seu espólio um testemunho de muito interesse, as duas cartas que
dirigiu a F. Desphelippon, membro do conselho de administração do
semanário Monde, de tendência
marxista e dirigido pelo escritor comunista Henry Barbusse. Bento Caraça não era, e as duas cartas
demonstram-no bem, um simples leitor e assinante do periódico. Com efeito,
respondendo ao apelo do Monde,
enuncia detalhadamente na primeira carta, de 18/9/1929, a sua opinião sobre as secções que o semanário deveria ter,
quais os temas principais que deveria tratar regularmente, entre eles,
sublinhando a necessidade de uma ou mais páginas de actualidade, uma página de
vulgarização de doutrinas políticas e sociais e, por último, uma página de
informação económica, política e social sobre a URSS.
Na segunda carta, de 16/10/1930,
depois de ter anunciado a projectada criação de um núcleo de Amigos do Monde, Caraça traça um quadro esclarecedor das preocupações que em
Portugal também existiam à face dos preparativos de uma nova guerra, assim como
da necessidade igualmente sentida de organizar o movimento de massas que a ela
se opusesse, um movimento que apenas esboçava os primeiros passos tímidos, como
a carta deixa entrever:
- Ao mesmo tempo gostaria de ter indicações sobre organizações como a Liga Anti-Imperialista, a Liga Internacional contra o serviço militar, que acaba de ser criada, etc. Aqui, a juventude radicaliza-se e há muita gente que desejaria realizar qualquer acção internacional, mas está desorientada, o divórcio entre os jovens e os velhos é completo; estes dormem sobre recordações antigas e aqueles despertam mas sem saber ao certo, creio eu, o que pretendem. O momento é único para uma acção séria e vós podeis ajudar-nos nessa obra.
Dois anos mais tarde, em Novembro de 1932, seguro e determinado, toma posição pública contra as ameaças
de guerra que dia a dia se adensavam sobre a Europa. Admirador de Romain
Rolland (dos seus ideais, da sua obra
e dos seus apelos contra a guerra e contra o fascismo) e paladino das
recomendações do Congresso Internacional contra a Guerra, organização pela Frente
Mundial contra a Guerra e realizado em Amesterdão em Agosto de 1932, Caraça publicou no semanário Liberdade
o artigo A Luta contra a Guerra». In Alberto Pedroso, Bento de Jesus Caraça,
Semeador de Cultura e Cidadania. Inéditos e dispersos, Campo das Letras
Editores, Porto, colecção Cultura Portuguesa, 2007, ISBN 978-989-625-128-4.
Cortesia de Campo das Letras/JDACT