domingo, 19 de maio de 2013

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «Tinha nos ouvidos o choro desabrido daquelas duas crianças, João e Dinis, e no coração um vazio tão áspero que nem orar podia. (…) que peçonha, pois esta mata e alivia e a outra tortura e agita»

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«(…) O reino acabara de viver no ano anterior a rude guerra civil entre pai e filho. A causa fora o homicídio de Inês e a dolorosa surpresa que isso provocara em Pedro. Com a ajuda dos irmãos da desditosa e sacrificada dona, Álvaro Peres de Castro e Fernando de Castro que tinham por si as vilas e os castelos da raia galega, o príncipe português talara os campos de entre Douro e Minho e viera pôr um duro cerco à cidade do Porto. O burgo, defendido por um homem do rei, Álvaro Gonçalves Pereira, prior do Hospital e seu compincha nas voltas do Salado, barrara as investidas dos invasores, sem sofrer sequer um beliscão. No Verão, o príncipe, desanimado e insatisfeito com o correr da guerra, aceitou a mediação da mãe, essa velada Brites que lhe acudira em Santa Clara aos filhos órfãos, e as pazes assinaram-se em Marco de Canaveses. O pai, mais moído do que pudera antecipar quando em Montemor ordenara a batida a Coimbra para degolar a nora, abdicava na prática no filho, oferecendo-lhe a real jurisdição no crime e no cível, e aceitava que os filhos de Inês se juntassem na corte ao herdeiro legal de Pedro, o apessoado e gentil Fernando, filho do curioso casamento de Pedro e Constança Manuel, donde haviam saído os misteriosos amores de Inês, que muitos diziam que haviam levado pelo meio, como adubo vivaz, os ardentes beijos da própria Constança.
Nesta doída e confusa situação de luto viera a rainha-mãe de Castela encontrar o reino e a família. O pai, Afonso IV cada vez mais abatido pelo peso dum homicídio; o irmão, Pedro, precocemente envelhecido aos trinta e cinco anos por uma perda brutal; a mãe, Brites, rodeada por três órfãos, dois meninos aterrorizados, João e Dinis, e uma menina, inocente ainda, na puerícia, Beatriz. Começavam então a correr as primeiras histórias da censurável justiça do príncipe. Fazia do cível uma mania, quando não um terror. Tinha um séquito completo de copistas, meirinhos, mordomos, confessores, físicos, notários, carrascos e executores. Estes eram os mais sinistros, vestidos de saiote de cabedal, cinta larga de corda e capuz preto na cabeça, onde só os olhos encarvoados se viam luzir. Não havia povoação ou casal que o príncipe não vasculhasse à procura duma iniquidade. Caprichava nas torturas e nos castigos. Vingava-se assim do próprio pai, oferecendo aquela desmedida sanha à alma da sua injustiçada amante.
O sangue, mais forte que o vinho, inebriava-o, mergulhando-o num êxtase de vago e olvido. Exorcismava o terror das recordações com as imagens do terror da vida. Preferia estas, que ele próprio manobrava a seu modo, às outras, muito mais violentas e desgovernadas. Quando nos intervalos do ofício, a lucidez lhe regressava, a tristeza e o desespero entravam nele. Nesses momentos uma única cousa o apaziguava, ir namorar, a chorar, a terra do campo santo onde repousava o mutilado corpo da amante. Rojava-se então naquelas pedras que tanto ele como o Mondego lavavam de abundantes lágrimas. Dizia-se que num desses lances de desesperada recordação, com a saudade a cortar-lhe a alma, prometera aos soluços sobre a laje que cobria Inês reinar viúvo, nunca mais tendo princesa ou rainha consigo.
Ai, as saudades! Tanto que se podia sobre elas discorrer. Passo, mas notando antes que este príncipe foi o primeiro que entre nós as sentiu tão aflitivas que delas acabou por ficar prisioneiro, assim deixando notícia de si. Ó rei saudade, sempre que passo pelo teu nome baixo os olhos em sinal de preito. Venero a tua dor e a paisagem sofredora da tua lembrança. E isso chega para ir ao teu beija-mão fantástico e póstumo. Mal chegou a Évora, a rainha-mãe sentiu o peso das suspeições em que o reino andava. Não havia dúvida que aquela atmosfera negra e fúnebre que sobre ele descera com a morte de Inês ainda não findara. Fora abalo demasiado poderoso para chegar ao fim com as pazes do Marco. As nuvens corriam grossas à procura de alívio. Seguidamente, quando o pai se deslocou a Évora para a abraçar, percebeu que o próximo rombo viria por ali. Era homem de sessenta e seis anos, cuja robustez sempre fora gabada. Chamavam-lhe o Bravo, pela compleição forte, pela intrepidez do montear e pela ferocidade no justar e no julgar. Agora, porém, mais parecia débil folha quebradiça que alão impulsivo e audaz. Emagrecera muito, já que de todo perdera o interesse no comer e no beber. Vivia num fastio permanente, atormentado pelos pensamentos dos últimos meses e pelas imagens que se desencadeavam no seu espírito e lhe traziam à memória as cenas de Santa Clara e o que se seguira.
Tinha nos ouvidos o choro desabrido daquelas duas crianças, João e Dinis, e no coração um vazio tão áspero que nem orar podia. A aridez de coração, quer chegue por insensibilidade, quer venha por falta ou insatisfação, é pior que peçonha, pois esta mata e alivia e a outra tortura e agita. Assustava-se o rei com qualquer ruído e estava irreconhecível, mesmo para quem como a filha não o via há mais de quinze anos. - A natural passagem das horas e dos anos tudo nos brita, meu pai. - Mais danosa, senhora, é a culpa que nos rói. - Não cureis, senhor, do que não tem remédio. Atentai que os negócios do reino pedem del-rei o siso. - Os negócios do reino e o siso del-rei... Quem em tal caso o pode ter? Mais de jeito me vai o desvairo.
Maria preferiu não responder. Vivia na alcáçova de Évora, numa casa contígua à Sé. Pediu uma cuvilheira para lhe demandar os órfãos de Martim Afonso Teles. Tinha medo do efeito nefasto que aquela visão imprimiria no pai, lembrando-lhe os netos, mas não podia evitar o assunto. Vieram os quatro órfãos. João Afonso passara já a primeira idade, aquela em que era de obrigação viver com as donas, e apresentava-se um formoso rapaz que tanto recordava a elegância de Fernando como a afoiteza de João de Castro, os primeiros netos do rei de Portugal. Maria, passara também os sete anos, e despertava em graças, bem guardada e cordata, ainda que com o alforge cheio de boas e vivas manhas, como era esperado em manceba da sua idade. Gonçalo era ainda tamanhino, pois mal acabava de empecer entre os que se erguiam nas duas pernas para andar. Leonor por fim era criança de colo, chupando ainda o alimento do seio da ama; nada se lhe apurava digno de nota, além do silêncio velado em que atravessava os dias. Eis a primeira vez que aos dedos me vem a figura, não o nome, de Leonor Teles. Traz com ela uma nuvem de silêncio e escuridão, essa mesma em que hoje se envolve a sua memória de rainha velada e maldita. É espantoso como o nascimento e a morte se equivalem a um tal ponto que é quase impossível distinguir um recém-nascido dum moribundo». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT