segunda-feira, 6 de maio de 2013

A Mesa dos Reis de Portugal. Casos e Ofícios da Mesa. Séculos XIII a XVI. Rita Costa Gomes. «A corte dos reis era um organismo com características próprias na sociedade medieval, onde os alimentos se revestiram de significados especiais e foram objecto de regras e práticas distintivas»

Banquete a D. Maria de Portugal. Bruxelas. Dezembro de 1565. Universidade de Varsória
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Os Convivas do Rei e a Estruturação da Corte. Séculos XIII a XVI
«Na Idade Média, o consumo e a administração dos alimentos do monarca e daqueles que o acompanhavam constituía uma função primordial da corte. Tal como as cortes dos imperadores e dos papas, também a corte dos reis era composta, no mínimo, de algumas centenas de indivíduos em constante deslocação pelos territórios submetidos à autoridade dos soberanos. Esta natureza itinerante da realeza manteve-se em Portugal, como nos restantes reinos europeus, até bem entrado o século XVI. Os problemas logísticos e de organização que a deslocação da corte levantaria requeriam um suporte administrativo mínimo para o sustento material dessa comunidade humana em movimento, originando um conjunto de ofícios deputado para tais fins. Mas o consumo e a administração de alimentos, a par do sustento para as montadas do séquito, não foi apenas uma resposta a um problema prático e logístico. Uma explicação histórica mais cabal deste fenómeno de distribuir e consumir alimentos na comitiva real permite concluir que a própria corte régia medieval se foi organizando, em grande medida, sob o efeito deste mecanismo de base, fundamental para a vida em comum.
Por outras palavras, longe de constituir um aspecto anedótico ou um pormenor de vida quotidiana, o consumo de alimentos e as tarefas necessárias ao aprovisionamento e à distribuição de comida foram, na corte, objecto de uma evolução peculiar, quer ao nível cerimonial, quer burocrático, evolução essa que veio a influenciar o modo como a corte se estruturou. Será este o tema principal deste ensaio.
A corte dos reis era um organismo com características próprias na sociedade medieval, onde os alimentos se revestiram de significados especiais e foram objecto de regras e práticas distintivas. A distribuição e o consumo de alimentos deu origem, por exemplo na Idade Média, a sistemas de classificação interna dos membros do séquito real, tal como incentivou a criação de mecanismos de contabilidade e administração próprios, e de rituais de relativa complexidade. No quadro de uma comparação, tanto quanto possível sistemática, da corte dos reis de Portugal com outras cortes contemporâneas, veremos como os usos e as instituições detectados neste reino mais ocidental da Península Ibérica se aproximam do que se conhece para outros reinos medievais europeus. Esta comparação pode guiar-nos na construção de novas hipóteses explicativas sobre a importância dos alimentos na corte portuguesa medieval, e sugerir outras interpretações das fontes históricas disponíveis. O nosso propósito não é tanto o de saber se a corte portuguesa se conformava ou não com supostos modelos ou normas vigentes em organismos congéneres da Europa pós-carolíngia, mas determinar como os monarcas em Portugal incorporaram nas práticas do seu próprio séquito tendências observáveis transversalmente nas demais realezas europeias, influenciando assim a evolução e a definição da corte, ainda que levando em conta estruturas e tradições próprias.
Numa análise histórica deste complexo cultural ligado ao sustento da comitiva real, o ritual não pode, em rigor, dissociar-se dos restantes aspectos. Em primeiro lugar, porque também o rito depende de uma particular organização de tarefas a desempenhar, requerendo a acção conjunta de vários agentes e, portanto, dependendo, tal como as esferas mais pragmáticas da administração ou da fiscalidade, do regime dos ofícios em vigor na corte. Existe, pois, uma correspondência a reconstruir, através da análise das fontes, entre o modo como a comitiva régia se estruturava e a forma que tomaria o cerimonial. Além disso, detectamos que os próprios servidores dos monarcas, a quem eram confiados os ofícios ligados à comida, viam nas suas atribuições rituais uma vertente indissociável dos seus deveres e até, quiçá, a parte mais prestigiante das suas tarefas. Os ritos da comensalidade na corte não podiam realizar-se sem determinados recursos materiais, e por isso é necessário saber como se obtinham e como se geriam, ou seja, como evoluiu a administração desses recursos para tornar possível esses momentos em que a comida se consumia no respeito de dadas hierarquias, as quais o próprio rito ajudava a estabelecer, e tornava patentes e passíveis de aprendizagem.
A nossa análise procederá de modo cronológico, distinguindo dois planos, ou perspectivas diversas, na administração e no consumo de alimentos na corte dos reis durante o período considerado mais detalhadamente neste ensaio, os séculos XIII a XVI. Por um lado, temos a comensalidade propriamente dita: como e em que ocasiões se comia em conjunto, quem o fazia, e quais os ofícios ligados a essa função. Num plano diverso, consideramos a evolução do conjunto de práticas e instituições que se prendem com o sustento regular daqueles que acompanhavam os soberanos com assiduidade». In A Mesa dos Reis de Portugal, Ofícios, Consumos, Cerimónias e Representações, séculos XIII-XVIII, Coordenação de Ana Isabel Buescu e David Felismino, Apresentação de Maria Helena Cruz Coelho, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-42-4695-6.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT