Os Convivas do Rei e a Estruturação da Corte. Séculos XIII a XVI
«Na Idade Média, o consumo e a administração dos alimentos do monarca e
daqueles que o acompanhavam constituía uma função primordial da corte. Tal como
as cortes dos imperadores e dos papas, também a corte dos reis era composta, no
mínimo, de algumas centenas de indivíduos em constante deslocação pelos
territórios submetidos à autoridade dos soberanos. Esta natureza itinerante da
realeza manteve-se em Portugal, como nos restantes reinos europeus, até bem entrado
o século XVI. Os problemas logísticos e de organização que a deslocação da
corte levantaria requeriam um suporte administrativo mínimo para o sustento material
dessa comunidade humana em movimento, originando um conjunto de ofícios
deputado para tais fins. Mas o consumo e a administração de alimentos, a par do
sustento para as montadas do séquito, não foi apenas uma resposta a um problema
prático e logístico. Uma explicação histórica mais cabal deste fenómeno de
distribuir e consumir alimentos na comitiva real permite concluir que a própria
corte régia medieval se foi organizando, em grande medida, sob o efeito deste mecanismo
de base, fundamental para a vida em comum.
Por outras palavras, longe de constituir um aspecto anedótico ou um
pormenor de vida quotidiana, o consumo de alimentos e as tarefas necessárias ao
aprovisionamento e à distribuição de comida foram, na corte, objecto de uma
evolução peculiar, quer ao nível cerimonial, quer burocrático, evolução essa
que veio a influenciar o modo como a corte se estruturou. Será este o tema
principal deste ensaio.
A corte dos reis era um organismo com características próprias na sociedade
medieval, onde os alimentos se revestiram de significados especiais e foram
objecto de regras e práticas distintivas. A distribuição e o consumo de alimentos
deu origem, por exemplo na Idade Média, a sistemas de classificação interna dos
membros do séquito real, tal como incentivou a criação de mecanismos de
contabilidade e administração próprios, e de rituais de relativa complexidade.
No quadro de uma comparação, tanto quanto possível sistemática, da corte dos reis
de Portugal com outras cortes contemporâneas, veremos como os usos e as
instituições detectados neste reino mais ocidental da Península Ibérica se
aproximam do que se conhece para outros reinos medievais europeus. Esta
comparação pode guiar-nos na construção de novas hipóteses explicativas sobre a
importância dos alimentos na corte portuguesa medieval, e sugerir outras
interpretações das fontes históricas disponíveis. O nosso propósito não é tanto
o de saber se a corte portuguesa se conformava ou não com supostos modelos ou normas vigentes em organismos
congéneres da Europa pós-carolíngia, mas determinar como os monarcas em
Portugal incorporaram nas práticas do seu próprio séquito tendências
observáveis transversalmente nas demais realezas europeias, influenciando assim
a evolução e a definição da corte, ainda que levando em conta estruturas e
tradições próprias.
Numa análise histórica deste complexo cultural ligado ao sustento da
comitiva real, o ritual não pode, em rigor, dissociar-se dos restantes aspectos.
Em primeiro lugar, porque também o rito depende de uma particular organização
de tarefas a desempenhar, requerendo a acção conjunta de vários agentes e,
portanto, dependendo, tal como as esferas mais pragmáticas da administração ou
da fiscalidade, do regime dos ofícios em vigor na corte. Existe, pois, uma
correspondência a reconstruir, através da análise das fontes, entre o modo como
a comitiva régia se estruturava e a forma que tomaria o cerimonial. Além disso,
detectamos que os próprios servidores dos monarcas, a quem eram confiados os ofícios
ligados à comida, viam nas suas atribuições rituais uma vertente indissociável
dos seus deveres e até, quiçá, a parte mais prestigiante das suas tarefas. Os
ritos da comensalidade na corte não podiam realizar-se sem determinados
recursos materiais, e por isso é necessário saber como se obtinham e como se
geriam, ou seja, como evoluiu a administração desses recursos para tornar
possível esses momentos em que a comida se consumia no respeito de dadas
hierarquias, as quais o próprio rito ajudava a estabelecer, e tornava patentes
e passíveis de aprendizagem.
A nossa análise procederá de modo cronológico, distinguindo dois
planos, ou perspectivas diversas, na administração e no consumo de alimentos na
corte dos reis durante o período considerado mais detalhadamente neste ensaio,
os séculos XIII a XVI. Por um lado, temos a comensalidade
propriamente dita: como e em que
ocasiões se comia em conjunto, quem o fazia, e quais os ofícios ligados a essa
função. Num plano diverso, consideramos a evolução do conjunto de
práticas e instituições que se prendem com o sustento regular daqueles que acompanhavam
os soberanos com assiduidade». In A Mesa dos Reis de Portugal, Ofícios,
Consumos, Cerimónias e Representações, séculos XIII-XVIII, Coordenação de Ana
Isabel Buescu e David Felismino, Apresentação de Maria Helena Cruz Coelho,
Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-42-4695-6.
Cortesia de Temas e Debates/JDACT