Testemunho de Dona Briolanja
«(…) Disse, por ser também perguntada pelo referimento nela feito, que
não era lembrada ouvir nem ver fazer, nem dizer e pessoa alguma coisa alguma
que fosse contra nossa santa fé católica; mais somente que, haverá seis anos,
que estando ela testemunha em Lisboa, em casa do dito Damião de Goes, tio do
pai dela testemunha, em um sábado, desejando ela testemunha, por ao tal tempo
andar prenhe, comer carne de porco por ver levar umas laranjas para a cozinha
do dito Damião de Goes, e dizendo os desejos que tinha de comer a dita carne e
que logo à ceia se pôs na mesa em que ela testemunha estava, e assim o dito
Damião de Goes e sua mulher Dona Joana, já defunta, entrecosto de porco e
linguiça. E posto tudo na mesa, junto a ela testemunha, disse o dito Damião de
Goes: - Sobrinha, não haveis vós de comer isso só; que havemos de comer todos. E
ela testemunha, por ser dia de sábado, disse: - Vossa Mercê também há-de comer?
Por lhe não parecer bem o que ele assim dizia; e ele lhe respondeu: -
Sobrinha, o que vai para dentro não faz nojo. E que comeu o dito Damião de Goes
da dita carne e linguiça, com ela testemunha; e assim a dita dona Joana, sua
mulher, e lhe parece que comeram até se acabar a dita carne e linguiça e que a
dita dona Joana era mal disposta e que o dito Damião de Goes estava são. E,
acabada a dita carne, se pôs a comer do pescado que havia na mesa e assim a
dita sua mulher, sem parecer que tinham pejo de comer a dita carne no dia de
sábado, por andarem servindo à mesa criados seus que o viam comer. Que lhe não
lembra agora quem eram, por haver treze ou catorze anos, pouco mais ou menos,
que isto foi (posto que atrás diga que haveria seis anos) e que lhe parece que
estava à dita mesa, e devia ver e ouvir o sobredito, sua filha Dona Catarina, que
então era solteira, e ora é casada com Luís de Castro. E que ela testemunha
ficou escandalizada do que assim viu fazer e ouviu, posto que o dito Damião de
Goes lhe não falou mais sobre isso palavra alguma, mas que, pelo escândalo que
isso teve, por ser sábado, lhe parece que logo o disse a António Gomes, seu
marido. E lhe contou todo o sobredito.
E que, ao tempo que ela testemunha soube como o dito Damião de Goes era
preso pelo Santo Ofício (maldito), o tornou a dizer ao dito seu marido,
dizendo: - Não sei porque o prendessem pela Santa Inquisição (maldita), porque
nunca lhe vi fazer nem dizer coisa de mau cristão, mais que somente ver-lhe
comer aquela carne em dia de sábado. E que, falando ao mesmo propósito com
seu irmão Sebastião de Macedo, e assim com sua cunhada Dona Guiomar, mulher do
dito seu irmão Sebastião de Macedo, lhes disse que não sabia porque o
prendessem porque não sabia mais dele que ver-lhe comer carne de porco e linguiça
em dia de sábado, e dizer-lhe que o que ia para dentro não fazia nojo, senão o
que vinha para fora.
E que lhe parece que o mesmo disse ela testemunha a Helena Jorge, sua
mãe; e que lhe parece que lhe disse isto pela dita prisão e assim por lhe dizer
a dita sua mãe, algumas vezes, estando em prática: - Não tinha vosso pai
paciência de Damião de Goes mandar seus filhos moços a Flandres, nem sabia que
proveito esperava tirar disso. E assim lhe parece que lhe disse também a dita
sua mãe que dizia o dito seu pai algumas vezes: - Não crê mais Damião de Goes
em Deus que nessa parede.
Não declarando o porque. E que doutra coisa não é lembrada ao presente.
Nem que o dissesse a outras pessoas. E que ela testemunha comeu da dita carne
por sua indisposição e por razão do perigo que corria, por causa dos ditos
desejos; e que todavia o confessou a seus confessores e que não confessou a
seus confessores o que assim ouviu fazer ao dito Damião de Goes, por não cair
bem na obrigação que a isso tinha, posto que lhe pareceu muito mal por ser
contra o que manda a Santa Madre Igreja. E que, se nisso teve alguma culpa,
pede disso perdão porque não deixou de o fazer por respeito nenhum senão por
não cair nisso. E al não disse. E do costume não disse nada, mas somente que o
que dito tem do dito Damião de Goes ser tio do dito seu pai. E lhe foi mandado,
sob cargo de juramento, que recebeu, que tivesse segredo no caso e assim o
prometeu. E eu Pedro Álvares, notário do Santo Ofício (maldito), que o escrevi
e assinei aqui, com o Rev. Domingos Simões, por ela a seu rogo». In
Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na Inquisição, Assírio & Alvim,
2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.
continua
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT