domingo, 19 de maio de 2013

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «A discórdia dos irmãos unidos por laços de sangue e separados por ambições pessoais, mistérios bem guardados e conspirações políticas. A glória e a queda de uma “família perfeita”»


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Volta à terra que te viu nascer
«(…) Por sua vez, o enviado do rei de Portugal, Diogo de Bairros, adail-mor do rei, homem da sua inteira confiança e grande conhecedor do terreno e do quotidiano marroquinos, investido de todos os poderes necessários para levar por diante a missão, tinha feito os contactos fundamentais para tornar úteis as condições que os portugueses dispunham no Magrebe em 1472. Desta vez, Afonso V conseguiu juntar o capital suficiente para fazer regressar ao reino a encomenda que há tanto tempo, incompreensivelmente, tinha saído e não voltara.
Em Ceuta, os portugueses mantinham reféns o filho e as mulheres do Mollexeque da vencida praça de Arzila, um bem ao qual o mouro dava o maior valor criando assim boas condições para o monarca português poder negociar em posição de superioridade. O negócio consistia em trocar seres humanos vivos por restos, mas, dentro de uma política de olho por olho, dente por dente, a intenção era justa e resultava eficaz. Esta cidade tinha sido a primeira praça conquistada no Norte de África, em 1415, reinava em Portugal João I, avô de Afonso V tendo atrás de si uma longa história de resistência aos magrebinos. O que pretendia fazer o Africano português com os familiares do Mollexeque de Arzila cativos? Quando o rei tomou conhecimento do valor político dos capturados, o seu pensamento não mais deixou de estar ocupado com a oportunidade que se abria de, finalmente, recuperar a relíquia há muitos anos inanimada em Fez.
Contudo, levantavam-se outras questões que o deixavam inquieto:
  • Seriam os filhos e as mulheres do Mollexe que suficientes para executar a permuta? Seria desta vez que os mouros negociavam com tolerância o que restava do objecto precioso há tanto tempo desprezado, questões a que o rei podia por fim responder sem se enganar.
Sentindo-se possuído pelo sonho dos grandes feitos passados contra os infiéis, Afonso V fez das cidades marroquinas viradas para a Europa um palco de guerra sem quartel, tudo por culpa da malograda tentativa de 1437 para conquistar Tânger, evento que deixou marcas profundas no moral do reino, mas agora o rei podia reivindicar compensação. Belfagege ainda terá oferecido a Afonso pelo resgate dos seus familiares uma quantidade de ouro difícil de ignorar, mas o monarca vitorioso rejeitou-a, por inconvertível para o seu projecto. Para ele, não! Em vez do vil metal, o soberano de Portugal e das praças de Ceuta, Alcácer Ceguer, Tânger, Arzila, Larache, um rei tão africano como outros, queria o corpo sacrificado que pendia dentro de um caixão há largos anos, para exemplo do poder e da ideologia religiosa dos muçulmanos, mas de descrédito para os cristãos.
- Iria pensar no assunto, respondeu o rei de Fez, contrariado. Pela sua parte, Afonso não queria nem ouvir falar noutra proposta que não fosse a entrega do ataúde. Ou vinha o esquife ou o rei ficava com menos duas das suas mulheres e um filho. Finalmente, demonstrando o pragmatismo que o arresto dos seus familiares obrigava, o senhor de Fez, terminado o período de reflexão, aceitou as exigentes jogadas de Afonso, pelas significativas razões enunciadas. Tudo corre como o planeado. Instruídos pelo responsável da missão, todos sabiam o seu papel, e, por isso, o adail-mor não precisava de se preocupar. Tinha retardado a viagem para poder chegar a altas horas da noite sem ser visto, e ainda por cima, por doação divina, o nevoeiro engoliu o barco logo à entrada da barra. Contudo, era necessário comunicar com o rei.
Cortando os rolos de nevoeiro que sobrelevavam as águas, saiu da caravela uma embarcação transportando o mensageiro e a sua besta muda. Chegados à praia, num salto, o cavaleiro pôs os pés na areia ainda submersa, puxando com força o cavalo relutante em experimentar a água fria. Já com os pés assentes em terra firme, mais uma etapa vencida, o homem encheu-se de satisfação por ter sido o escolhido de Bairros para chegar até à presença do rei, segurando com força contra o peito, debaixo da camisa, o traslado que o adail-mor lhe entregou, uma jóia de reembolso mais do que certo. Pôs-se em cima do animal, esporeou-o com a piedade que a visão lhe concedia, não sabendo ao certo do que tratava o documento nem a fundamental importância dele. Mas tinha uma convicção. Tudo o que acontecera desde que Diogo de Bairros falou consigo em Ceuta convencera-o de que a missão proposta era de grande importância, segredo e de certeza compensadora. Sem desconfiar, não era essa a sua obrigação, cheirava-lhe a grossa recompensa, e essa era uma presunção suficientemente motivadora para lhe animar o espírito e aquecer o corpo. Além disso, a hipótese de estar a cumprir uma missão de transcendente valor para o rei também lhe dava coragem, numa noite em que os faladores se calavam». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de C. do Autor/JDACT